CASCABULHAR

Crônica: O que você anda cascabulhando por aí? – Por Luis Cosme Pinto

Leia a crônica do jornalista e escritor carioca, com seu olhar bem peculiar da vida cotidiana. Hoje ele mostra que o brasileiro continua lindo

Créditos: Assembleia Legislativa do Espírito Santo
Escrito en OPINIÃO el

O que você anda cascabulhando por aí?

               *********************************

                              O Brasileiro Continua Lindo

Cascabulhar. Poucas vezes tive tanta gana de escrever uma palavra.

Cascabulhar, explica o dicionário, é remover cascabulho, que pode ser material ou produto ruim, de segunda. Quem me apresentou a novidade tem outra interpretação.

- A gente fala cascabulhar quando quer dizer que o cabra quer saber onde tá uma coisa e sai remexendo. Revirando na bagunça, cascalhando, sabe?

- E o que você cascabulhou?

- Cascabulhei meu emprego. Mesmo com carteira profissional de motorista, levei um ano para achar vaga nesta frota de táxi.

- Então, a gente pode dizer que cascabulhar é procurar?

- Não senhor, procurar é fácil. Cascabulhar é quando o cabra se esforça, sofre.

Jadinelson conta a história do início.

- Sempre tive perna comprida, aos dez anos já pisava na embreagem e encaixava as marchas. Aos dezoito fiquei feliz pra valer.

- Me fala    

- Caí de vez na estrada. Virei caminhoneiro e descobri que tinha diesel nas veias.

Em frente a um cartaz com propaganda política, mais uma frase.

- Os caras brigam no palanque e depois da eleição tomam cerveja no mesmo copo. Político não me entra.

Cascabulhar. Diesel nas veias. Rivais dividindo o mesmo copo. Jadinelson tem intimidade com as palavras.

Meu encontro com o cascabulhador é numa praia de areia fofa, maré transparente e uma exuberante floresta de coqueiros.

- É tronco fino que o vento entorta mas não quebra, não senhor. Mais duro que pau de angico.

Danado, o Jadinelson.

Estamos em Maragogi, onde Alagoas já tem sotaque pernambucano. Enquanto as jangadas e seus almirantes se revezam em passeios e pescarias, eu, minha filha e Jadinelson embarcamos no táxi para o Recife. É uma visita a amigos, um bate e volta. No máximo quatro horas entre ir e vir, alguém nos incentiva.

O céu preto promete, até ruge, mas não cumpre e viajamos com asfalto seco. Porém, a tempestade que se intimidou de manhã, despenca à tarde. O violento aguaceiro alaga e paralisa a capital pernambucana, até os amigos se assustam.

Ao contrário deles, Jadinelson está sereno no comando do Gol 1.0 a gás.  Ao mesmo tempo que centenas de carros param nos acostamentos ou sobre as calçadas, ele segue o rastro dos pneus largos de um caminhão baú.

- Ele abre caminho, é como se a pista estivesse seca pra gente.  

Sem aplicativo de localização, nosso piloto cola na traseira do caminhão, dribla o caos e encontra a estrada de volta para Alagoas. A chuva aumenta, mas, indiferentes à enxurrada, ele e minha filha cantam juntos. Primeiro os sanfoneiros, depois Milton, Raça Negra, Sertanejos, Paula Toller. Acredite, ele é afinado e conhece as letras.

- Como guarda tudo?

- Só canto o que conheço, moço.

O senhor – como ele me chamava no início da viagem – ficou pelos alagamentos do Recife

Pausa no karaokê. História da vida real.

Para dirigir o dia todo este homem de quarenta anos, cabelo farto e pele tostada de sal e sol, recebe apenas cinquenta reais. Se trabalhar sete dias por semana vai ganhar bruto mil e quinhentos reais por mês. Com as caixinhas, no máximo dois mil. É muito pouco para sustentar a mulher e as duas filhas adolescentes. A sorte da família é que Jadinelson também entende de Economia.

- Aprendi com seu Jadir, meu avô, pai de meu pai, o Nelson: é melhor engolir do que cuspir. Se entra mais do que sai tá tudo certo, entende?

- Como assim?

- Tem que gastar menos do que ganha, se não o cabra se lasca.

Maria do Socorro, a companheira de Jadinelson, faz uma chamada de vídeo, quer saber do marido. Falta meia hora para chegarmos de volta a Maragogi e ela então pede que “Jadi” fale com o cachorro, que saudoso do dono não jantou. Ele assobia na direção do celular preso no painel e pede ao amigo. O vira latas engole os restos de um frango com arroz e depois late alto.

- Você sabe meu sonho?

- Fala porque não vou adivinhar.

- Com o dinheiro que ganhar na Mega comprar um ônibus, desses de dois andares, e transformar na minha casa. Embaixo, a cabine do motorista, sala, cozinha e banheiro. Em cima, duas suítes com teto solar. Vou mostrar o Brasil todo pras minhas meninas.

É a última curva e já lamento calado o fim da aventura. Descemos do carro e nos apertamos num triplo abraço de despedida.

Na madrugada, minha filha acorda e me ouve murmurando. Eu cascabulho, tu cascabulhas, ele cascabulha.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum