A notícia saiu em jornais de todo o mundo e assim Kristopher Magnusson, então um adolescente, morador da pequena Visby, na Suécia, ouviu falar pela primeira vez do Brasil. O garoto, que sempre curtiu filmes policiais, vibrou com a mirabolante história de um publicitário paulista. O homem foi libertado do cativeiro depois de bater na parede da casa onde tinha sido trancafiado por uma quadrilha internacional.
Do outro lado, na casa vizinha, uma médica curiosa com os ruídos durante a madrugada, encostou um estetoscópio na parede e ouviu o pedido de socorro. Terminava de forma pacífica um dos maiores sequestros da história do distante país sul americano.
Pam, pam, pam
Vinte anos depois, Kristopher, agora um homem de mais de trinta anos, também bate na parede. E a parede é brasileira. O engenheiro caiu numa armadilha e ficou preso. Não era vítima de sequestro, Kristopher estava trancafiado num cubículo, sem ventilação, de atmosfera pesada, com pouca luz. O cárcere de Kristopher era um banheiro de quatro metros quadrados.
O engenheiro veio passar duas semanas em São Paulo para conhecer um cliente.
A conversa com o empresário flui em inglês. Já no dia a dia da cidade, o sueco tenta se adaptar ao “brasileirês”, gosta da sonoridade da nova língua e já conhece algumas palavras. Com esforço explica ao motorista onde é a padaria que os colegas indicaram para ele comer o melhor pão do bairro.
Não compreende bem por que o pão brasileiro é chamado de francês, menos ainda quando sabe que o dono da padaria é português. Experimenta o crocante pão na chapa. Fica ainda mais impressionado quando, na mesa em frente, seis mulheres fazem o mesmo pedido com impensáveis variações.
- O meu café é expresso simples
- Expresso com espuma de leite
- O meu é expressinho carioca
- Pra mim, expresso curto
- Quero o meu expresso longo, por favor.
- Expresso duplo, pingado e desnatado, tá?
Kristopher já pagou a conta, mas vai até o banheiro, tranca a porta e antes abrir a torneira, alivia a bexiga. Só então lava as mãos.
E de mãos lavadas e perfumadas tenta abrir a porta. O trinco dá meia volta, mas não completa a virada. Ele volta e repete o movimento. A fechadura emperra. Kristopher insiste, sem resultado. Sabe que é preciso se acalmar, puxa a porta pra perto de si e vai aos poucos forçando a fechadura. Uma, duas e ouve um creque. Não é um creque em que as engrenagens se encontram e destravam, é um creque de fratura. O trinco está na mão direita dele. Quebrado.
Kristopher tenta recolocar o trinco para abrir a fechadura, não adianta. Bate na porta, lembra do publicitário.
Esmurra a parede, primeiro devagar, depois mais rápido e com força. Nada. Encosta o ouvido no azulejo gelado. Conclui que ninguém vai ouvir seus apelos.
- Dois chapados
- Francês integral com requeijão na saída
- Misto frio, capricha que é para o seu Quintela
- Minas quente com tomate e orégano. É sem miolo.
Não entende os significados, mas novamente gosta da diversidade das palavras. O que será quintela? E miolo?
Lamenta não ter estudado português e lê, sem entender, as palavras escritas no banheiro.
Proibido jogar papel no vaso. Proibido jogar papel no chão. Proibido subir em cima do vaso. À caneta, em letra miúda outra inscrição: proibido grudar meleca na parede. Seja lá o que for, proibido é uma palavra importante, conclui.
Kris é forte, louro de cabelos grandes, barba volumosa e quase dois metros de altura. Está incomodado com a falta de espaço e sabe que a única chance de comunicação é o celular. Pelo serviço de busca descobre o telefone da padaria e tenta pedir ajuda ao caixa.
- Panificadora Choupal, bom dia
- Por obrigado, estar aqui reservado...
- Como é?
- Ali solitário pode me sacar no banho?
- Não entendi.
- No banho
- Não, aqui é padaria, meu filho. Não liga mais não, tá?
Kris luta pela liberdade.
- Chopp all?
- É, é da Choupal. O que o senhor deseja?
- Com certeza, não há de quê. Chou, chou eu aqui. Chópe dir...
- Não pode pedir chopp pra viagem meu amigo. Chopp é aqui no balcão ou nas mesas e só depois das quatro da tarde.
- Por obrigado, speak english?
- Nem chopp, nem picles.
- Proibido, me-le-ca.
- Me deixa trabalhar. Para de ligar ou vou rastrear seu telefone
Já eram vinte minutos de prisão até que e Kristopher lembrou que falar sueco podia ser mais fácil. Telefonou a cobrar para a própria casa, a doze mil quilômetros de São Paulo. Com a filha mais nova no colo, Helga primeiro duvidou, mas o marido sempre brincalhão estava nervoso demais para não ser verdade.
- Helga, liga na polícia aí de Visby e pede o telefone da embaixada brasileira em Estocolmo. Lá eles vão falar sueco e português, daí você pergunta o telefone do consulado sueco em São Paulo ou da embaixada em Brasília. Então, você fala em sueco com ele que eu estou preso no banheiro da padaria.e pede que eles liguem aqui. O endereço é...
- Pera aí, vou anotar
- Rua...
A ligação caiu, a bateria havia acabado.
Até que...
- Ei, tem gente aí dentro?
- Por obrigado.
- Tá passando mal? Pera aí.
Foi um freguês, apertado pra fazer xixi, o salvador de Kris.
Ele alertou Amauri, o caixa, que chamou Jaime. O chaveiro abriu a porta em dois minutos.
Lá longe e mesmo sem o endereço, Helga, com bebê no colo, peito doendo e panela no fogo, continuava tentando, em vão.
No dia seguinte, o Brasil foi novamente notícia na Suécia. O principal jornal de Visby destacou com humor: SEQUESTRADO PELA LÍNGUA. ENGENHEIRO SUECO FICA PRESO EM BANHEIRO NO BRASIL E NÃO CONSEGUE PEDIR SOCORRO.
Em São Paulo, a notícia circulou ali mesmo no balcão da padaria.
Logo que Kris saiu do banheiro, Amauri pediu desculpas, explicou que não sabia inglês, mas que ele podia pedir um café e pão como cortesia. Fregueses traduziram e Kris sorriu agradecido pela gentileza. Feliz e aliviado falou devagar.
- Por obrigado querro um pão de espuma duplo e um expresso no miolo quente do Quintela. Muito por favor e proibido.
**Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.