ESTRATÉGIA

Orar e punir: o que resta a Bolsonaro – Por Raphael Fagundes

A visão neopentecostal está bem longe do individualismo moderno de Lutero e Calvino. Assim como a visão sobre a punição, a visão religiosa sustentada pelo bolsonarismo é retrógrada

Michelle Bolsonaro em ação.Créditos: Reprodução/Twitter
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Em “Vigiar e punir”, Foucault descreve o nascimento das prisões como uma técnica disciplinar. Antes, o suplício fazia parte do procedimento que estabelecia a realidade daquele que era punido. “A atrocidade que paira sobre o suplício desempenha, portanto, um duplo papel: sendo princípio da comunicação do crime com a pena, ela é por outro lado a exasperação do castigo em relação ao crime".

Mais tarde houve uma mitigação das penas. A punição “não é mais a simetria da vingança, é a transferência do sinal ao que ele significa". O punido deve ser ridicularizado, sentir vergonha, “ele sentirá o que é perder a livre disposição de seus bens, de sua honra, de seu tempo e de seu corpo, para, por sua vez, respeitá-lo nos outros".[1]

Por último, a disciplina, tecnologia moderna indispensável para fabricar o indivíduo, forjou o princípio do quadriculamento. Isolar os corpos para discipliná-los. A criança nas escolas, os trabalhadores nas fábricas, os doentes nos hospitais, os loucos nos hospícios e, enfim, os delinquentes nas prisões.

Contudo, embora essa técnica seja eficiente para o funcionamento do sistema, ela é menos teatral. Ver o punido sendo submetido ao suplício movia multidões, era espetacular. Já a prisão é algo mais técnico, jurídico em demasia, algo que não cai tanto na graça do povo. A punição se afastou do olhar das massas.

Bolsonaro é o único candidato que inflama a massa ávida por vingança. Ele atende ao modelo tradicional superado pela modernidade. Bolsonaro parabeniza os policiais do massacre da Vila do Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

Este será um dos viés de Bolsonaro para atrair a massa. Foucault, em outra obra, mostra que o capitalismo colocou, “nas mãos da classe popular”, a riqueza dos patrões, matérias-primas, máquinas e instrumentos. Era necessário, portanto, proteger esta riqueza. Daí foi necessário um processo de moralização. Separou-se o povo do grupo dos delinquentes, mostrando estes como “perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres”. Além disso, eram “formidáveis” as “campanhas de cristianização junto aos operários que tiveram lugar nesta época”.[2]

Aqui entra outra questão. Bolsonaro cerca os trabalhadores. Os afetados pela inflação e desemprego, pela precarização do trabalho etc, sem opção e esperança correm para a igreja de seu bairro, onde Bolsonaro faz um trabalho pesado com os evangélicos.

“A esperança mágica é a mira do futuro própria daqueles que não têm futuro", já dizia Bourdieu.

A luta para “mudar a si mesmo pode ser levado adiante como se não fosse propriamente um esforço para mudar o ‘eu', mas simnuma luta contra forças exógenas que afetariam esse ‘eu'”. A visão neopentecostal está bem longe do individualismo moderno de Lutero e Calvino. Assim como a visão sobre a punição, a visão religiosa sustentada pelo bolsonarismo é retrógrada.

Mas os culpados dos males sociais não são os ricos e o clero, como os movimentos medievais populares defendiam. Nessa lógica neopentecostal, o problema são os “encostos". Um vizinho com inveja, “falsos amigos" que “botam olho grande", o parente invejoso, alguém que fez “macumba".[3]

Humilhado num trabalho cada vez mais precarizado, quando não está desempregado, o cidadão, quando entra na igreja, houve que é um escolhido e abençoado por Deus. Quando está doente e não há vagas nos leitos, o pastor e outros membros da comunidade evangélica visitam-no em casa. Na falência intencional do Estado, Bolsonaro penetra ideologicamente nos espaços que úteis para conter a mobilização popular contra o establishment.

É por isso que vemos Michelle Bolsonaro se ajoelhar, em meio aos prantos orar, falar em línguas, pedir o “avivamento" da nação. Todas as características de identificação com o público neopentecostal.

É uma imensa covardia. Uma tática de ódio ao delinquente e alienação das contradições sociais através do conforto que a religião proporciona. A causa da miséria do operariado é a política de Bolsonaro, descompromissada com a nação e alinhada aos interesses neoliberais. Mas o presidente se apresenta como solução dentro de uma ideologia moralizante que entende que a razão de todo mal é o delinquente e que, por outro lado, somente a fé livrará o povo da desgraça. E a ideologia age da sua forma mais clássica, como um instrumento que esconde as relações reais de produção.

 

[1] FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 105.

[2] FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 133.

[3] ROCHA, E. e TORRES, R. O crente e o delinquente. In: SOUZA, J. (Org.) A ralé brasileira. Belo Horizonte: EUFMG, 2009, p. 223.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.