Está em curso no Brasil um verdadeiro retrocesso na Política Nacional de Saúde Mental. O desmonte da Reforma Psiquiátrica por parte do governo federal vem pondo em xeque a existência de um modelo de saúde mental humanizado e que foi reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um exemplo a ser seguido. Portanto, é um desafio constante defender os avanços da Reforma Psiquiátrica no dia a dia da gestão em saúde no país.
A partir dos anos 2000, as políticas públicas em saúde mental avançaram progressivamente, respeitando os direitos humanos, a autonomia, a liberdade e o exercício da cidadania. Com base em uma visão comunitária e territorial, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) foram criados ao redor do país, servindo como um dispositivo de atenção diária, personalizado e promotor da vida.
No mesmo período, houve uma importante inversão nos recursos financeiros destinados à área de saúde mental, e serviços como os do CAPS passaram a dispor de um orçamento superior ao dos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, foi possível fechar milhares de manicômios, entendidos como datados e ultrapassados, e construir uma rede extra-hospitalar mais forte.
Tivemos importantes marcos normativos. A Lei da Reforma Psiquiátrica contribuiu para a descentralização da assistência e a melhoria da qualidade de vida do portador de transtorno mental, garantindo por meio de lei a dignidade do paciente. A Portaria 336 de 2002 conferiu ao CAPS o destaque necessário para a mudança na estratégia de atenção psicossocial e na relação da sociedade com a loucura, dispondo sobre o seu funcionamento, a sua equipe e as diversas modalidades e competências essenciais para o acompanhamento territorial. A Portaria 3.088 de 2011 instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), passando a contar, para além do CAPS, com serviços da atenção primária à saúde e de urgência e emergência, como os leitos de saúde mental em hospitais gerais, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e as Unidades de Acolhimento (UA).
Esses avanços são fruto de décadas de luta do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, em um processo marcado por tensões entre a psiquiatria tradicional (e conservadora) e a atenção psicossocial. Isto porque as políticas públicas em saúde mental enfraqueceram os manicômios e fragilizaram a psiquiatria tradicional, que tinha nesse espaço não só poder, mas uma preciosa fonte de lucros. O foco nos territórios deu horizontalidade à relação entre os profissionais, que passaram a atuar por meio de práticas compartilhadas e colaborativas. Nesse cenário, o protagonismo é do usuário e não do sintoma, de toda uma equipe e não de um único médico.
Esses avanços começaram a ser revertidos a partir de 2016. A Emenda Constitucional 95, a “PEC do Teto dos Gastos”, provocou a diminuição massiva de investimentos em todas as políticas sociais brasileiras. Ao mesmo tempo em que recursos federais antes voltados para serviços de base comunitária e territorial foram paralisados, entidades privadas passaram a incidir cada vez mais sobre a área de saúde mental. A Portaria nº 3.588 de 2017, por exemplo, vai na contramão da Reforma Psiquiátrica e traz inúmeros retrocessos. Tem destaque o aumento do valor da diária de internação paga aos hospitais psiquiátricos e a ampliação do número de leitos nessas unidades, incentivando as internações. Surge também a proposta do CAPS AD IV, que distorce a proposta psicossocial do CAPS e recupera a lógica manicomial do passado, que tem como princípio a exclusão, a opressão e a violência.
Esse quadro foi ainda mais agravado a partir do governo Bolsonaro. Sob o pretexto de melhor acolhimento à pacientes em crise, o Ministério da Saúde realizou uma atualização na proposta do CAPS AD IV, ignorando os espaços de participação comunitária e de controle social na gestão em saúde e a relação intergestores do Sistema Único de Saúde (SUS). No novo serviço, é exigida uma quantidade desnecessária de médicos e enfermeiros em detrimento de uma equipe multidisciplinar, reforçando um modelo asilar e não territorial e comunitário.
Em documentos recentes, o Ministério da Saúde, orienta que não sejam fechados leitos em hospitais psiquiátricos, aumenta o financiamento público para internações em manicômios e deixa estagnado o financiamento federal para os serviços de caráter comunitário e territorial, que não têm reajustes de custeio há muitos anos e vêm sofrendo sucateamento progressivo.
Chama a atenção a transferência das políticas de cuidado em álcool e drogas do SUS para o Ministério da Cidadania. Os recursos públicos destinados à RAPS têm sido repassados às entidades que administram a Comunidades Terapêuticas, que baseiam suas ações no tripé laborterapia (trabalho não remunerado), oração e abstinência - passando de R$157 milhões em 2019 para R$300 milhões em 2020. Em 2021, R$89 milhões foram repassados a Comunidades Terapêuticas sem qualquer tipo de licitação. Além da ausência de fiscalização, publicização de informações, diretrizes práticas e critérios técnicos para o seu funcionamento, são inúmeras as denúncias de violações de direitos humanos nesses espaços.
São muitos os grupos que lucram com a loucura e que estão em parceria com Bolsonaro, pondo em risco os avanços conquistados a duras penas pelo movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira. A violência já foi disseminada, vidas interrompidas e pessoas menosprezadas, mas ainda há tempo de impedir um retrocesso ainda maior.
É preciso retomar um modelo de saúde mental comunitário e territorial. Diante de um “museu de grandes novidades”, façamos resistência no dia a dia da gestão em saúde, fortalecendo os CAPS e outros equipamentos territoriais que fazem parte do SUS, garantindo as ações e serviços que fazem a rede de atenção psicossocial pulsar.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.