Causou frisson nas redes sociais esta semana uma declaração do Presidente Lula, num debate em São Paulo, sobre a questão do aborto. A fala do provável candidato do PT nas próximas eleições presidenciais foi a seguinte: "Aqui no Brasil não faz (aborto) porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha.” Bastou a entrevista viralizar para ser alvo do ódio de bolsonaristas e fundamentalistas religiosos. Os pseudos “defensores da família” trataram de espalhar o vídeo nas redes e, claro, deturpar totalmente a fala do petista.
Várias mídias trataram de colocar como manchete que “Lula virou alvo de evangélicos” e coisas afins. Pois é sobre isso que quero falar na coluna de hoje: os evangélicos e a dura realidade do aborto.
Pra começo de conversa quero dizer o que muitos já dizem há tempos e constantemente repito aqui: os evangélicos são múltiplos, diversos e diversificados. Só aos mercadores da fé, como Malafaia, Valadões, Linhares, Macedo e outros da mesma estirpe interessa o discurso de homogeinização desse universo plural e até mesmo antagônico às vezes, que são as igrejas e movimentos evangélicos no Brasil.
Quanto ao aborto, por exemplo, vou fazer uma divisão simplória (existem mais de 50 tons de crentes no Brasil), mas que espero ser didática. Vou dividir essa massa em quatro partes: os religiosamente e politicamente conservadores, os “nem-nem” – política e religiosamente nem tão conservadores, nem tão progressistas, os religiosamente conservadores e politicamente progressistas e os religiosamente e politicamente progressistas. Vamos lá...
Os religiosamente e politicamente conservadores são irreversíveis: são “contra o aborto” e ponto final. Alguns são contra até mesmo nos casos já permitidos pela Constituição Federal. Para estes, o que “a Bíblia diz” (aqui as aspas são necessárias – o correto seria dizer “segundo a interpretação bíblica deles”) deve ser regra para todo o país, independente da diversidade de credos. A noção de “pecado” deveria ser abraçada pelo Estado. É pecado? O Estado deveria ser contra. E para estes, o aborto é pecado comparado ao assassinato. É esse o discurso, muitas vezes até violento, usado até mesmo contra crianças vítimas de estupro, como já vimos acontecer algumas vezes. Essa turma está fechada com Bolsonaro. Não tem jeito. É caso “perdido”.
Os “nem-nem”. Nem tão conservadores, nem tão progressistas, seja política ou religiosamente falando. É uma turma que flutua, inclusive entre igrejas. Não têm uma teologia definida, nem mesmo uma igreja a que se sintam “fiéis”, muito menos a uma “ideologia política”. São influenciáveis ao extremo. Uma hora podem estar fechado coma direita, por exemplo, e no momento seguinte com o lado oposto. Assemelham-se aos “isentões”, com uma tendência à direita (geralmente o muro tomba para a direita), mas aqui e ali há casos de um “fechamento” com o “centro-esquerda”. Nunca assumem lado, mas diante de dificuldades, acordos ou orientações pastorais podem migrar de um lado para o outro. No caso específico do aborto têm opiniões tão diversas quanto suas incertezas. São mentes em “disputa”. Apesar da tendência ao conservadorismo, podem surpreender.
Os religiosamente conservadores e politicamente progressistas (ou até mesmo alguns “isentões”) entendem o aborto como “pecado”, mantém o discurso religioso tradicional, no entanto, admitem que o tema é complexo e não deve ser ditado a partir da religião. A noção de Estado laico deve ser levada em conta, ainda que muitas vezes discordem das decisões governamentais mais “progressistas”. Para estes, o que a constituição garante já está bom e caso avance, a igreja pode continuar com seu discurso conservador, mas respeitando (ainda que a contragosto) a laicidade do Estado.
Para o último grupo, religiosa e politicamente progressistas, o aborto deve ser visto sobre outra perspectiva: como uma questão total de saúde pública e que atinge, principalmente, mulheres pobres e pretas. Não cabe para o Estado, que deveria ser totalmente laico, a mínima discussão sobre “o que é pecado ou não”. Pecado é um tema da religião, não do Estado. A não ser que o Estado seja teocrático (o que muitos adorariam ver no Brasil). A leitura bíblica é feita a partir de outra ótica, não literal e com indícios da liberdade e responsabilidade humanas, baseada no amor ao próximo e na busca pela dignidade humana.
Ditas estas coisas e feitas essas diferenciações que julgo necessárias, é importante que a esquerda assuma o debate, de forma equilibrada e com paciência para explicar o que significa a descriminalização do aborto. Por conta das fake news e do discurso fundamentalista o que prevalece uma ideia absurda, plantada por líderes religiosos fundamentalistas, de que teríamos um Estado PRÓ-ABORTO, onde no imaginário popular, teríamos “quiosques” de aborto na porta das escolas, propagandas incentivando o aborto, etc...
Nada mais distante da realidade. O fato é (e Lula voltou a falar disso hoje, com propriedade) que, queira quer ou não, o aborto é uma realidade. As mulheres, quando querem, abortam. Ponto. E entre estas mulheres, muitas são católicas e evangélicas. Muitas! O grande problema é que, mais uma vez, a enorme desigualdade social também interfere nisso. As mulheres com maior poder aquisitivo pagam clínicas particulares (que todos sabem onde estão, quais os médicos que realizam, etc) e fazem seus procedimentos de forma “segura”. Com o total aval do Estado, que faz vista grossa às clínicas que realizam esses procedimentos ilegais. Já as mulheres pobres, principalmente pobres e pretas, submetem-se aos métodos mais absurdos e indignos possíveis e, em grande número, morrem ao passar por tais procedimentos. E é aqui que a descriminalização faria diferença.
Descriminalizar o aborto não significa, nem de longe, incentivar o ato, mas garantir às mulheres que, por circunstâncias das mais diversas, pensam em realizá-lo, o DIREITO de serem acompanhadas pelo Estado nesse momento tão difícil. E ao serem amparadas pelo Estado, sem medo de serem PRESAS por isso (lembrem-se, as ricas JAMAIS correm esse risco), seriam acompanhadas por um corpo médico, assistência social e psicológica e, e somente após isso, caso continuem desejando, ter a segurança de realizar a interrupção da gravidez de forma segura, tanto psicológica quanto clinicamente. É bom salientar, e isso é MUITO IMPORTANTE, que os países que adotaram a DESCRIMINALIZAÇÃO viram o número de mortes dessas mulheres diminuir drasticamente e, para alegria dos “conservadores”, também o número de aborto diminuir consideravelmente, já que todo apoio psicológico e social era oferecido às mulheres, a maioria delas em situação vulnerável.
Assim, sendo, o presidente Lula, acerta, e muito, ao trazer este assunto à baila nesse momento de pré-campanha. Por alguns motivos que enumero a partir de agora:
1) Lula não pode ficar refém de uma agenda moralista, ditada por fundamentalistas religiosos, que NÃO PENSAM um país democrático, e que querem impor suas doutrinas/regras religiosas a um país que, mais que nunca, precisa reafirmar sua laicidade;
2) Lula põe o tema no lugar em que ele deve estar: Aborto é, em se tratando de um Estado, um tema de Saúde Pública. Não cabe ao Estado legislar sobre percepções de “pecado” (geralmente restritos à algumas confissões de fé), mas sobre fatores sociais e realidades que atingem, principalmente, o povo pobre e preto das periferias;
3) Ao querer avançar nessa e outras pautas, reafirmando a laicidade do Estado, Lula fortalece a liberdade religiosa que, pasme, é exatamente o que garante aos conservadores/fundamentalistas o DIREITO de continuarem pensando o que pensam e, inclusive, pregando isso entre suas “paredes eclesiásticas”. No fim das contas, é o Estado laico que garante a existência dos fundamentalistas.
4) Lula não fala isso “sozinho”. Apesar de ter que se posicionar (e não poder delegar isso à outras pessoas, já que ELE é o pré-candidato), o posicionamento dele passa, invariavelmente pela escuta e percepção das mulheres que, nos governos de esquerda, geralmente (ainda que longe do ideal) têm mais poder de fala e são mais ouvidas/acolhidas em suas demandas. Inclusive tendo alguns de seus partidos presididos/liderados por mulheres. ESSE TALVEZ SEJA O PONTO MAIS IMPORTANTE DE TODO ESSE TEXTO: Não pode haver discussão sobre aborto, SEM QUE AS MULHERES SEJAM OUVIDAS. São elas quem sofrem todas essas dores. É DELAS A VOZ.
5) Lula dá uma aula de entendimento do que é um Estado laico ao afirmar que, pessoalmente, é contra o aborto, mas entende que seu entendimento pessoal, com certeza carregado de conteúdo religioso não pode prevalecer sobre o Estado. O Estado é maior que quaisquer religiões que o compõem e não pode ser refém de nenhuma delas.
Por fim, e aqui expresso minha opinião, Lula acerta ao não ceder ao fundamentalismo religioso, que é uma praga na sociedade brasileira e, mais ainda, ao contrário do que muitos dizem que “Lula não pode se indispor com evangélicos”, penso que qualquer pensamento religioso que seja absolutista é perverso para um país e como tal deve ser rechaçado. E mais, não é só a “questão do aborto”. Falasse o que falasse, essa massa conservadora religiosa e politicamente está PROGRAMADA a SER CONTRA qualquer fala que venha da “esquerda”. Se lula dissesse “Deus é amor e o Brasil precisa amar mais!” essa mesma massa ia acusá-lo de “estar usando o nome de Deus em vão”. Simples assim. Porque para eles, só quem pode usar o nome de “Deus” é quem estiver alinhado aos seus projetos (no plural) de poder! Tanto que nem coram mais ao apoiarem um governo que é totalmente contrário aos ensinamentos do Cristo, mas como usa “Deus” da mesma forma que eles USAM, aí... pooooode!
Temos muito a avançar! Muito! E para isso, entre outros males, o do fundamentalismo religioso que quer tornar o país um eterno refém de suas pautas moralistas (mas nem de longe humanas ou dignas) é um problema a ser enfrentado sem medo, sem melindres e corajosamente por aqueles que sonham com um Brasil mais justo para todas as pessoas, principalmente as historicamente excluídas de seus direitos e da possibilidade de uma vida digna.
Avancemos! Com Lula presidente!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.