TRAGÉDIA TOTAL

O que é mais escandaloso: farra da virilidade, pastores corruptos ou tortura? – Por Raphael Fagundes

Jogar os holofotes nos escândalos da tortura vai ser o caminho polêmico e caótico explorado por Bolsonaro para abafar os casos de corrupção?

Militares do STM sabiam das torturas.Créditos: Superior Tribunal Militar
Escrito en OPINIÃO el

Os áudios que comprovam a tortura nos porões da ditadura civil-militar encobriram os escândalos que envolviam o Exército brasileiro numa espécie de “farra da virilidade”. A corrupção relacionada à compra exagerada de Viagra, próteses penianas e filé mignon (lembrando que comer carne exageradamente esteve por muito tempo relacionado ao comportamento masculino) foi para segundo plano.

Mas isso pode agradar ao eleitor de Bolsonaro, mais preocupado com a questão da virilidade que da ofensa e aniquilamento do próximo? Os evangélicos (que ao lado dos militares compõem a maioria esmagadora do eleitorado de Bolsonaro) preocupam-se mais com um escândalo moral, envolvendo sexualidade etc, ou sobre um escândalo envolvendo tortura?

Embora seja uma questão complicada para muitos, ou até mesmo contraditória, não é tão difícil de entender por que é que um cristão seria a favor da tortura, ou mesmo da morte de outros.

Primeiro que o sacrifício, a morte cerimonial, é a base das primeiras religiões do mundo. De acordo com Barbara Ehrenreich, a morte ritualizada foi “provavelmente a forma que os seres humanos tinham de se aproximar do transcendental”.[1]

Por outro lado, a morte na cultura judaica nunca foi um problema, já que toda vez que o mundo ordenado por Yahweh entrava em caos, este não pensava duas vezes em aniquilar a humanidade (ou parte dela). E, ainda assim, os seres humanos que sobreviviam continuavam a ter fé Nele, isto porque, cabe lembrar, Yahweh foi o primeiro deus que não era abandonado em caso de derrota militar ou catástrofe. Outros povos do crisol Sírio-palestino não titubeavam em abandonar o seu deus tutelar.[2]

Em Romanos 1:32, Paulo lembra que os homossexuais são dignos de morte de acordo com o juízo de Deus. Mas essa ainda não é a questão que trago para a reflexão. Os mandamentos de Cristo são abertos para inúmeras interpretações, inclusive, é possível defender as minorias já que a seita de Jesus era composta por elas. Contudo, uma interpretação sobre a dor durou por muito tempo na mentalidade do mundo Ocidental.

A Idade Média banalizou a dor. O sacrifício de Cristo, todo o seu sofrimento para salvar a humanidade, fez da dor um caminho para a verdade. Para os torturadores da Inquisição, a tortura não era um ato de violência, ou uma maldade. Acreditava-se que se uma pessoa sofresse como Jesus seria impossível dela mentir. A dor de Cristo revelou a verdade. Foi sofrendo que ele morreu e três dias depois deu-se o milagre que fundamenta o cristianismo: a ressurreição.

Torturar um infiel era uma maneira de levá-lo à redenção, de confessar que pecou e que jamais irá pecar. Torturar-se a si mesmo era uma forma de se aproximar de Cristo. O que explica o autoflagelo. Mentir sob tortura, sofrendo como Cristo, seria impossível.

Sabemos que a tortura foi usada durante o período militar para extrair a “verdade” que os militares queriam, inclusive torturavam crianças na frente dos pais para isso (uma espécie de dor mais sofisticada). E o mesmo fazem os soldados americanos no Oriente Médio, o que não é novidade para ninguém.

A questão é que por longos anos a Igreja interpretou a dor da seguinte forma, coloca Roselyne Rey: “Aprender a suportar a dor como um dom de Deus e um sacrifício que aproxima o fiel do Cristo, como um meio de redenção”.

Era uma maneira de “oferecer seu sofrimento a Deus e de lhe provar seu amor”.[3] É muito curiosa essa ideia do “machão” que não sente dor. Na verdade, a origem do não sentir dor não tem que ver com a virilidade, mas em ser um bom fiel. A história do duque de Guise, Henri le Balafré, é ilustrativa. Ele deixou que lhe retirassem uma lança que lhe atravessara o rosto de um lado ao outro, reagindo com um único “Ah!” de sofrimento.

Enfim, um cristão defender a tortura não é algo incompatível, pelo contrário, faz um enorme sentido. Por mais dessacralizado que o mundo ocidental seja hoje, essa questão é uma das heranças deixada pela fé, que ainda habita a mentalidade de muitos que se dizem tementes à Deus.

Existe até mesmo uma concepção teológica que afirma que Jesus deveria sofrer, ser torturado, pois foi uma determinação de Deus. Ou seja, sua tortura foi a mando de seu pai. É como escreveu de forma radical Mikhail Bakhtin: “...um Deus de amor, após ter atormentado a existência de alguns bilhões de pobres seres humanos e tê-los condenado a um eterno inferno, sentiu piedade e para salvá-los, para reconciliar seu amor eterno e divino com sua cólera eterna e divina, sempre ávida de vítimas e de sangue, ele enviou ao mundo, como uma vítima expiatória, seu filho único, a fim de que ele fosse morto pelos homens”.

Deste modo, podemos pensar na possibilidade de o cristão estar do lado do torturador e não do torturado. Muitos deles, são mais seguidores de Pilatos que de Cristo, pois preferem estar do lado daquele que tortura e jamais do que sofre.

Os escândalos atuais envolvem os principais grupos que apoiam Bolsonaro, os pastores evangélicos do Ministério da Educação e os militares torturadores e débeis sexuais. Mas, no caso, o problema nunca foi a tortura, já que o cristianismo tem um largo histórico de torturas assim como o Exército, mas a corrupção. Os seguidores de Bolsonaro temem que seus mestres sejam acusados de corruptos. Jogar os holofotes nos escândalos da tortura (que todos já sabiam) vai ser o caminho polêmico e caótico (característica da retórica bolsonarista) explorado por Bolsonaro para abafar os casos de corrupção?

 

[1] EHRENREICH, Barbara. Ritos de sangue: um estudo sobre as origens da guerra. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 32.

[2] COHN, N. Cosmos, caos e o mundo que virá. São Paulo: Cia das Letras, 1996. p. 191

[3] ROSELYNE, R. A história da dor. São Paulo: Escuta, 2012. P. 72

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.