Uma das maiores discussões entre os analistas e estrategistas internacionais consiste na possibilidade de haver uma Terceira Guerra Mundial e uma nova geopolítica mundial após o conflito a Ucrânia e a Rússia. E essa nova geografia passará, necessariamente, pelos posicionamentos dos EUA e da China.
Quando analisamos a mídia internacional e a política de Estado norte-americana da última década, é possível ver que a maioria das estratégias econômicas e das relações internacionais norte-americana está focada em conter a expansão chinesa. Ainda que muitos analistas esperassem por uma mudança da postura internacional depois da eleição de Joe Biden. Decepcionaram-se.
Na verdade, o conflito comercial e tecnológico entre EUA-China está se intensificando. Políticos do lado dos EUA pressionam cada vez mais pela redução da dependência tecnológica através das chamadas ordens executivas, as quais têm servido como o principal instrumento da política industrial norte-americana para aplicar sansões econômicas à China.
Nesse sentido, os EUA nunca estiveram tão determinados em atingir seu objetivo de enfraquecer a China como agora. A administração Biden tem demonstrado uma continuidade significativa com a política de Trump na sua abordagem com relação à China. Biden continua mantendo restrições às empresas tecnológicas chinesas, implementadas durante o governo de Trump, enquanto expande outras.
As principais medidas estão expressas nas ordens executivas (sanções) 13.873, 14.034 e 13.959, as quais representam algumas das mais duras medidas de Washington contra Pequim e que estão banindo ou limitando a expansão de empresas chinesas no mercado norte-americano, valendo-se do argumento de defesa nacional nas áreas de informática, telefonia celular, plataformas digitais, mídia sociais, internet das coisas, satélites de monitoramento e comunicação, drones, semicondutores, entre outras.
Aqui os leitores devem estar se perguntando: o que a guerra entre Rússia e Ucrânia tem a ver com esse objetivo? Explico ao leitor.
Moscou sempre foi visto como aliado de primeira linha de Pequim e rival político de Washington mesmo depois do fim da Guerra Fria. Assim, enfraquecer Moscou significa atingir dois objetivos: (i) enfraquecer o antigo inimigo (Rússia); e (ii) diminuir o poder do atual adversário (China).
A narrativa moral histórica construída pelos EUA é de que existem dois mundos. Como o próprio presidente norte-americano, Joe Biden, gosta de explicitar: os EUA são o líder das nações livres, bem como o guardião da liberdade e da democracia ocidental, enquanto que, obviamente, Moscou e Pequim não são nações livres e estão vinculadas a um sistema antidemocrático e ditatorial, ou seja, o lado bom e o lado mau.
Essa narrativa pode ser claramente compreendida através do trabalho do filósofo Friedrich Nietzsche, que explicita o conceito de moralidade cristã, tão enobrecida pelo governo norte-americano. Em sua obra “Genealogia da Moral”, Nietzsche demonstra que o conceito de “bom e mau” são avaliações do mestre, do aristocrata e do poderoso. Para Nietzsche, “bons e maus” refletem os juízos de alguém possuído por si próprio, no qual o “mau” é simplesmente tudo o que é prejudicial ao seu prazer, ao seu florescimento e ao poder autodirigente. Portanto, construir uma versão de que a Rússia é liderada por um criminoso de guerra, impetuoso e destruidor de uma nação somente pelo seu ego, assemelhando-se a um ditador, é o que cabe corretamente nessa visão de mundo.
Além disso, esse discurso moralista tenta construir um paradigma no qual o outro adversário, neste caso a China, estaria ajudando a Rússia e, na verdade, criando outro monstro que precisa ser combatido.
Isso pode ser claramente observado em três eventos recentes. O primeiro foi o discurso do presidente Joe Biden sobre o Estado da União — que consiste no relatório anual apresentado pelo presidente norte-americano na presença do Congresso dos Estados Unidos —, apresentando o povo ucraniano de forma teatral, representado pela embaixadora ucraniana nos Estados Unidos, onde chamava Vladimir Putin de criminoso e o presidente Volodimyr Zelinsky de herói, dizendo que os países que auxiliassem a Rússia receberiam sansões fortíssimas.
O segundo episódio aconteceu em um dos programas televisivos mais assistidos nos EUA chamado de “Face the Nation” (Enfrentando a Nação, em tradução livre), da emissora CBS, em que o embaixador chinês nos EUA é confrontado pela âncora do programa que tenta, de forma forçosa e manipulativa, extrair a ideia de que a China faz comércio com a Rússia e, portanto, está auxiliando a Rússia.
O terceiro episódio ocorreu durante a visita de Biden à Polônia em conjunto com Jens Stoltenberg, Secretário-geral da OTAN, em que ambos ameaçaram a China com a imposição de sansões econômicas.
Logo após esses episódios, a diplomacia chinesa reiterou publicamente que a China é contra a guerra e que mantém excelente relações com os países conflituosos, sendo o principal parceiro comercial de ambos. Além disso, ela explicitou a estratégia dos EUA e da OTAN em criar uma situação publica para criminalizar a China.
Eu iria mais além: os EUA estão forçando a China a assumir uma posição de moderadora, pois os chineses sabem que se os norte-americanos não pararem de contaminar o lado ucraniano com mentiras, construindo uma narrativa de que o presidente da Ucrânia será um herói mundial, a China não terá êxito no auxilio do cessar-fogo e que isso enfraquecerá ainda mais a posição de Pequim.
A posição da OTAN e dos EUA tem sido clara: enviar armas e dinheiro e não se envolver diretamente no conflito. Os artífices do mundo livre conseguiram criar e formalizar na sessão da Assembleia Geral da ONU (24 de março de 2022) uma resolução que condena a Rússia pela “terrível” situação humanitária na Ucrânia, mesmo sabendo que tal conflito poderia ter sido evitado, pelo menos, desde 2014.
Temos que ter clareza de que o único objetivo é prolongar a guerra e enfraquecer econômica e politicamente a Rússia e a China. Ou seja, enfraquecendo o “eixo do mau” que, como Nietsche demostra, é aquele que não deixará o mundo livre prosperar.
Infelizmente, não podemos ser ingênuos e não nos cabe aqui também fazer a defesa nem de um lado nem do outro, pois ambos estão sofrendo consequências devastadoras, mas, como em todos os casos que envolvem líderes norte-americanos, existe aquela máxima de que não existe almoço de graça — e o que é a destruição de um povo seja ele iraquiano, afegão, sérvio ou ucraniano — para que o mundo livre prospere é apenas uma pequena conta.
A reunião que está sendo realizada em Istambul, mais uma vez, é caracterizada pela falta de consenso e com pouco avanços. A luz no fim do túnel aparecerá quando os países da União Europeia e da Ásia se derem conta que continuam sendo manipulados pelos EUA. Antes disso, o povo ucraniano continuará sendo dizimado, e o russo sofrerá das sansões econômicas impostas pela grande América.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum