SEMIÓTICA

Deep State e Grande Reset Global fazem hipernormalização da guerra na Ucrânia – Por Wilson Ferreira

Através das telas, o mundo se entretém com a cobertura corporativa da Guerra na Ucrânia com todos os elementos semióticos de hipernormalização: discurso infantilizado, sentimentalismo e temor

Escrito en OPINIÃO el

“Nunca acredite em nada do que você ouve, 

e apenas na metade do que você vê” (H.L. Mencken)

O presidente dos EUA subiu à tribuna da Câmara e exortou: “Esses dois atos, de terrorismo internacional e outro de agressão militar, representam um sério desafio para os Estados Unidos da América e, de fato, para todas as nações do mundo livre. Enfrentaremos essa ameaça de paz, de subjugar um povo ferozmente independente e profundamente religioso”. E depois, apresentou uma lista de sanções econômicas.

Quem fez essa exortação? Joe Biden, no seu discurso sobre o “Estado da União”, na terça à noite? Não! Há 42 anos, o então presidente Jimmy Carter fez esse discurso diante da invasão da União Soviética no Afeganistão. As semelhanças são difíceis de se perder. 

Biden deu uma resposta nos mesmos moldes das recomendações que o conselheiro de segurança nacional, o cientista político polonês Zbignew Brzezinski (e membro de destaque da Comissão Trilateral que, nos anos 60-70, ao lado de Henry Kissinger, fez a arquitetura da Guerra fria) deu a Carter. Para, a partir daí, iniciar uma operação secreta de apoio aos jihadistas afegãos na sua guerra contra os ocupantes soviéticos.

Washington parece estar muito tentado a seguir a cartilha de Brzezinski. Ou, pelo menos, essa é a estratégia que o documentarista britânico Adam Curtis chama de “Hipernormalização”: a “gestão da percepção” (a versão hiperreal da velha Relações Públicas) na qual criam-se ondas de choque ou climas de opinião cujo eixo central é apagar as fronteiras entre ficção e realidade – mais precisamente, entre as narrativas de entretenimento (filmes, animações, literatura, minisséries etc.) e os acontecimentos pautados pelo noticiário da grande mídia - clique aqui.

“Seguir a cartilha” da Comissão Trilateral significa repetir, dessa vez como farsa, a Guerra Fria old fashion. Se no passado, a Guerra Fria foi uma tragédia que marcou toda uma geração com o terror da iminência do holocausto nuclear, agora a Guerra Fria 2.0 realiza-se como farsa, no plano do hiper-real: false flags, não-acontecimentos, stage-actions, figurinos, cenografias e detalhadas marcações de cena, com direito a enquadramentos de câmera com caprichadas profundidades de campo no melhor estilo dos westerns da fase áurea de Hollywood.

Se Adam Curtis estiver correto com o seu conceito de “hipernormalização” (normalizar o real por se assemelhar à ficção – em suma, “canastrice”), não estamos mais diante da clássica propaganda de guerra da grande mídia ocidental. Estamos diante de um paradoxal produto de entretenimento para as massas – assim como foi a Guerra do Golfo em 1990, a primeira guerra transmitida ao vivo cuja linguagem se assemelhou a um vídeo game.

 Como produto de entretenimento, adota os mesmos elementos de fixação do imaginário dos espectadores dos produtos cinematográficos e audiovisuais: discurso infantilizado (maniqueísmo, alívio cômico, contos de fadas com finais felizes etc.), sentimentalismo (busca de boas histórias “motivacionais”) e temor (o Mal onipresente, indeterminado, exponencial etc.).

Mas, como falam os americanos, “não há almoço grátis”. Esse entretenimento diário através da TV, celulares e tablets tem um preço no mundo real: como todas as guerras, não servem para resolver nada, a não ser abrir janelas de oportunidades para aprofundar ou reconfigurar o “realismo capitalista”: a percepção de que é mais fácil o mundo acabar do que o Capitalismo.

Por trás dessa mise-en-scène (a democracia ocidental dos parlamentos nacionais e organizações supranacionais sob a luz das câmeras e roteiros de jornalistas, cineastas e publicitários) estão os nossos credores, aqueles que cobrarão um pesado preço pelo show caro que produzem. 

Credores divididos em duas esferas: (a) as oligarquias que formam o chamado “Deep State” e (b) fóruns de discussão privados que nesse momento estão reconfigurando o Capitalismo – o chamado “Grande Reset Global”.

Mas antes vamos detalhar o roteiro desse entretenimento. Para depois falarmos da conta do show.

Primeira Esfera: Hipernormalização

No centro estão os protagonistas perfeitos: de um lado, nada menos do que um ator, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, com todo o natural domínio do ofício; e do outro o presidente russo Vladimir Putin, com o sua physique du rôle perfeito para o roteiro da Guerra Fria 2.0 – ex-agente da KGB, com o seu olhar soturno, sempre de soslaio, como se olhasse desconfiado debaixo para cima. 

Nas semanas que antecederam a invasão russa, o “esquenta” na grande mídia era diário: imagens repetidas em looping de movimentações de soldados, blindados, explosões e disparos dos canhões de tanques e bazucas high tech em áreas de exercícios militares, supostamente nas fronteiras da Ucrânia.

Criou-se uma expectativa superestimada de que, houvesse uma invasão, seria uma blitzkrieg implacável. Afinal, a fama russa a precede: a segunda força militar do planeta e uma potência nuclear. Tudo se resolveria em questões de horas, numa cruel guerra relâmpago que certamente não pouparia civis – correspondendo a ávida expectativa da grande mídia do Ocidente por sensacionais fotos e imagens de um holocausto russo.

O canal CNN colocou uma câmera fixa num terraço, na Maidan Square, Kiev, aguardando os esperados mísseis russos caindo na capital, ao vivo, num recall da Bagdah da Guerra do Golfo. Mas... nada! Parece que propositalmente o vilão Putin decidiu contrariar a expectativa, num primeiro plot-twist: as primeiras unidades enviadas foram, em sua maioria, formadas por recrutas de forças regulares russas. Enquanto o poder aéreo russo está sendo usado criteriosamente e os ataques ocorrem de forma pontual, com mísseis, foguetes e combates de infantaria.

Ao mesmo tempo, um longo comboio de 60 km move-se em um ritmo lento, com as forças verdadeiramente de elite com suas armas pesadas como os novos tanques T-14 Armata da Rússia e seu veículo blindado de transporte de pessoal BMPT-72 Terminator (APC), projetado exatamente para o tipo de guerra urbana que as forças russas encontrarão se entrarem em Kiev.

Como em toda narrativa ficcional, o desenrolar do tempo tem que ser revolvido com elipses, para acelerar a história. Mal começou a invasão e, visto que o vilão soviético não oferecia o aguardado cenário de holocausto, no quarto dia de cobertura midiática começaram os relatos sobre “problemas logísticos russos”, como “falta de combustível”, e “moral baixo dos soldados” depois de uma “longa campanha” desde os exercícios que precederam na fronteira.

Porém, o gênio dramatúrgico de Zelensky deu o seu “caco” que acendeu a lampadinha na cabeça dos roteiristas e salvou o dia: “Não preciso de carona, preciso de munição!”, foi a mensagem que o presidente ucraniano deu a um suposto convite da inteligência dos EUA para levar ele e sua família para um lugar seguro.

Ora, porque não pensaram nisso antes! E o mundo se maravilhou com a brava resistência do povo ucraniano nas ruas, sem armas, mas com muita determinação e patriotismo! E o mundo vem acompanhando, espantado, a capacidade do povo em perseguir e retardar o ataque russo – vídeos de pessoas se colocando na frente de tanques russos (clichê dos tanques paralisados pelo “rebelde desconhecido” na Praça da Paz Celestial, China, 1989) e populares com a bandeira do país bloqueando estradas.


Ou o vídeo de uma idosa que parou na frente de um soldado russo e indagou se ele tinha sementes de girassol no bolso. Para quê? - perguntou o militar. “Para crescerem girassóis na sua cova aqui na Ucrânia”, teria dito a destemida septuagenária... até o apresentador José Roberto Burnier deu um sorriso sem graça, tamanha a canastrice de um verdadeiro vídeo-release, cortesia da OTAN para dar o necessário alívio cômico de uma narrativa infantilizada.

E Zelensky se aprimora no papel da sua vida. Vendo que o seu heroísmo crescia na Europa, virando o símbolo da unificação de um continente até então dividido nas sanções econômicas contra a Rússia, o ator passou a se sentir no papel do protagonista da série de TV que o levou à presidência: “O Servo do Povo”.

Aprimorou a cenografia, figurino e marcações de cena, principalmente após a entrevista concedida ao ator Sean Penn em pleno cenário de guerra, que oportunisticamente já está produzindo um documentário sobre Zelensky e a crise da Ucrânia: camisetas em verde-oliva para ele, para o prefeito de Kiev e para os negociadores nas reuniões de acordo de paz com representantes russos; entrevistas com Zelensky em seu gabinete com enquadramentos perfeitos em profundidade de campo, com pilhas de sacos de areia em posição perfeita para ficarem nítidos, mesmo em segundo plano – décor canastríssimo do herói em pleno campo de batalha e reuniões em salas de crise... mas com tempo para cumprir uma extensa agenda de entrevistas e transmissões... mesmo depois que a torre de transmissão de TV de Kiev foi atingida por foguetes russos...


Mais um flagrante da canastríssima hipernormalização: loucos por personagens e boas histórias, a CNN Internacional e o jornalismo corporativo brasileiro repercutiram imagens de um pianista que toca para refugiados que chegam à fronteira da Polônia. “Estou tocando pela paz”, afirma o pianista Davide Martello, com um piano e o símbolo da paz estampado nele. 

É um daqueles lugares comuns do jornalismo de guerra, como o caso do pianista que tocava entre as ruínas de um campo de refugiados sírios, repercutido pela BBC em 2015. Hipernormalização: a realidade imitando a narrativa ficcional do filme O Pianista (2002), ecoando as imagens da fragilidade de um artista diante da brutalidade da invasão nazista na Polônia na II Guerra Mundial. 


Isso sem falar de mal-entendidos, atribuições incorretas e identificações equivocadas, verdadeiros enganos deliberados projetados para provocar uma resposta ficcional... ou simplesmente fake news que completam o movimento semiótico de hipernormalização.

(a) O fantasma de Kiev - Na manhã de sexta-feira, foi relatado que um único avião ucraniano, um MiG-29, estava patrulhando os céus acima de Kiev. A imprensa de língua inglesa chamou o piloto não identificado de “O Fantasma de Kiev”, e afirmou que ele havia derrubado 6 jatos russos em combate ar-ar em menos de 2 dias, tornando-o uma espécie de “ás da aviação” (o “Barão Vermelho” na nova Guerra fria). E um vídeo supostamente “o Fantasma” em combate – compartilhado pelas Forças Armadas Ucranianas – foi confirmado como retirado de um videogame para PC chamado “Digital Combat Simulator: World”, de 2013. No entanto, ele já tem sua própria página na Wikipedia. 


(b) Aviões russos sobrevoando Kiev - Muitas pessoas têm compartilhado um pequeno vídeo de aviões russos supostamente voando baixo sobre a cidade de Kiev. O Times usou uma foto dele em sua história “As sanções impedirão um projétil russo?”. O problema é que não é Kiev, é Moscou. E não é hoje, são dois anos atrás. São imagens do que provavelmente é um ensaio para o sobrevoo do Desfile do Dia da Vitória de 2020.


(c) Zelensky visitando as tropas - O Twitter ficou repleto de compartilhamentos de fotos dele em uniforme de combate, comparando-o favoravelmente a Trump e Trudeau e perguntando “que outros líderes lutariam ao lado de suas tropas?”. Mas o problema com isso é que as fotos têm quase um ano, tiradas quando ele visitou as tropas em abril do ano passado.


d) Mais videogame - Esta filmagem, alegando mostrar forças terrestres ucranianas derrubando aeronaves russas, também se tornou viral recentemente, aparecendo até nos noticiários da televisão espanhola.

(e) “Navio de guerra russo, vai se f*der” - Esta foi a primeira grande narrativa de propaganda após o avanço da Rússia em território ucraniano. Um áudio supostamente vazado mostrava guardas de fronteira ucranianos na pequena Ilha Snake, no mar Negro, se comunicando com um navio de guerra russo. Ao serem instruídos a se render, os guardas dizem “navio de guerra russo, vá se foder”. A imprensa ocidental informou que todos os 13 homens foram mortos, e o governo ucraniano divulgou um comunicado dizendo que todos receberiam honras póstumas. No entanto, enquanto os heróis supostamente caídos estavam sendo canonizados em todo o mundo ocidental, a Rússia estava relatando que eles não haviam sido mortos, mas levados vivos e ilesos de volta ao continente. Uma história que tanto a imprensa quanto o governo ucraniano admitiram com relutância ser provavelmente verdadeira.

Mas toda a construção desses pequenos gestos heróicos (o “fantasma de Kiev”) e dos grandes (Zelensky unindo a Europa) exige um vilão “verossímil”, isto é, hipernormalizado, tão próximo possível da ficção através de uma construção semiótica tautológica: por que Putin invadiu a Ucrânia? Porque ele é ambicioso e sanguinário... Mas porque é ambicioso e sanguinário? Porque quis invadir a Ucrânia, e assim por diante.

Algo assim como “uma conspiração orquestrada pelo Kremlin, intensificada desde a reeleição de Putin em 2012, para usar meios não militares e assimétricos de alcançar seus objetivos de enfraquecer a União Europeia e a OTAN e minar o liberalismo democrático global e ocidental”, como descreve a acadêmica norte-americana Michiko Kakutani no livro “A Morte da Verdade”.

Também algo como na animação Pink e o Cérebro na qual um rato de laboratório tem o desejo de dominar o mundo como um fim em si mesmo. É o mantra dos RAVs (russos, árabes e vilões em geral), vindo diretamente dos filmes hollywoodianos para o jornalismo corporativo.

Segunda Esfera: Deep State

O professor e pesquisador de economia da Universidade do Missouri e da Levy Economics Institute of Bard College, Michael Hudson, descreve em seu artigo “America defeats Germany for the third time in a Century” como, desde 1991, os EUA vem rejeitando o desarmamento mútuo entre países do Pacto de Varsóvia e da OTAN. A política dos EUA executada por Clinton e as administrações subsequentes empreenderam uma nova expansão militar via OTAN mudando a política externa da Europa Ocidental e outros aliados americanos. Para quê? Para atender aos interesses da “área de segurança nacional” dos EUA, eufemismo para “interesses especiais” que não podem ser nomeados.


Para além de todos os eufemismos, os interesses de três oligarquias que compõem a “bolha”, o planejamento central do governo, ou seja, formam o Deep State.

 

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