O que há em comum entre uma cratera que quase parou a Linha 11 da companhia de trens de São Paulo e mercenários brasileiros que ingenuamente facilitam a localização da ciberinteligência russa por postarem, nas redes sociais, fotos e clipes ao som de “Tropa de Elite”? Um efeito midiático que praticamente transforma acontecimentos em estúdios de TV a céu aberto: o “Efeito Heisenberg” – a mídia já não consegue transmitir os fatos, mas o impacto que a cobertura produz nos próprios fatos. Na verdade, o tempo todo ela cobre a si mesma. Enquanto a “alternativa técnica” da Prefeitura para tapar a cratera provocou cenas catastróficas de enchentes na região da Zona Leste de São Paulo, a vaidade das poses heroicas em busca de likes atrai os mísseis russos. O Efeito Heisenberg ilustra muito bem o potencial efeito letal da grande mídia em guerras híbridas.
07/03: Por conta das fortes chuvas que castigaram a cidade de São Paulo, uma cratera se abriu ao lado da Linha 11 (Coral) entre as estações Tatuapé e Corinthians-Itaquera da Companhia Paulista de trens Metropolitanos (CPTM). A causa foi o rompimento de uma galeria por onde escoa as águas da chuva durante o forte temporal que caiu na cidade no domingo, 06/03. Os trens começaram a operar com velocidade reduzida, aumentando o tempo de parada e a lotação das composições. Apesar das alternativas colocadas à disposição pela secretaria municipal de transportes, o caos nas estações só crescia;
08/03: cobrado pelos telejornais locais, a prefeitura divulgou uma data para realizar as obras emergenciais que normalizariam a Linha 11: 45 dias, dada a “complexidade das obras”, mesmo com os operários revezando em dois turnos. “Aí fica lento né... demora, tudo mundo reclama!”, reclamou o apresentador Carlos Tramontina no final desse dia, no telejornal local SPTV 2. Já no Bom Dia São Paulo, o telejornal ocupou 20 minutos mostrando os trens lotados, dando destaque para deficientes físicos que não podiam desembarcar e pessoas que estavam perdendo o dia de trabalho. E outras temendo até perder o emprego!...;
09/03: Parece que o protesto de Tramontina no dia anterior foi a deixa para o que viria no dia seguinte. Paulo Galli, secretário dos transportes municipais, concede entrevista ao vivo, por telefone, para o apresentador Rodrigo Bocardi. Enquanto o secretario fala, são mostradas em loop imagens de estações lotadas e passageiros se engalfinhando para entrar no trem... mais imagens de trens lotados. “As pessoas estão no limite... mais 45 dias é impossível”, já tinha dito Bocardi na abertura do telejornal.
E ao entrevistar Marcos Monteiro, secretário de infraestrutura e obras da capital, o bate bumbo aumentou: “Venho com a pergunta que todos estão fazendo... como a gente consegue fechar um buraco como aquele da Marginal, com os carros passando por ali, com um tempo tão curto e esse tem que demorar 45 dias?”. E pressionou: “O senhor, como professor de estruturas de concreto, ... não existe uma alternativa para preencher esse espaço com concreto?”.
A crise da Linha 11 e as imagens de desespero de passageiros nos trens lotados sobe para a rede nacional, no telejornal Bom Dia Brasil.
10/03: E a “alternativa técnica” veio. Sob a pressão da grande mídia nos telejornais locais, iniciou-se a simples concretagem da cratera, liberando a Linha 11 em 24 horas.
15/03: O Bom Dia São Paulo dá destaque a moradores do bairro Artur Alvim que fecham a Avenida Radial Leste queimando pneus, contra os graves alagamentos na região que começaram logo depois da “alternativa técnica” emergencial da Prefeitura.
Agora o telejornal não mostra mais o desespero de passageiros, mas de moradores e comerciantes que tiveram severos prejuízos em enchentes que se tornaram recorrentes no bairro. “Isso nunca aconteceu!”, protestam os moradores locais contra a “alternativa técnica” da Prefeitura.
Efeito Heisenberg na cratera da CPTM
Este episódio da crise aberta pela cratera (desculpem o trocadilho...) o “bate bumbo” dos telejornais locais, o anúncio dos 45 dias de obras, e depois mais jornalismo de megafone, a volta atrás da Prefeitura com uma “alternativa técnica” para finalmente terminar em pneus queimados dos protestos contra o efeito colateral de todo o imbróglio, é um didático exemplo daquilo que o crítico social Neil Gabler chamou de “Efeito Heisenberg”.
Para os leitores deste Cinegnose ainda não familiarizados com esse conceito, Gabler atribui esse fenômeno a um efeito secundário produzido pela mídia, resultante da sua onipresença que transforma, em muitos momentos, a sociedade em um gigantesco estúdio de TV. Da seguinte maneira: as mídias não relatam mais o que as pessoas fazem, mas os esforços dessas pessoas para obterem a atenção das mídias.
Disso decorre que na medida em que os agentes sociais vivem cada vez mais para as mídias, estas por sua vez cobrem a si mesma. Ou melhor dizendo, transmitem o impacto que as próprias coberturas jornalísticas geram entre os agentes sociais.
A alusão ao físico Werner Heisenberg (1901-1976) refere-se ao seu princípio da incerteza quântica, que o fenômeno midiático parece aludir – quando se estuda uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la. E a onipresença midiática teria esse mesmo destino quântico ao querer “estudar” os fatos – leia GABLER, Neil. Vida, O Filme, Companhia das Letras, 1999.
De ponta a ponta, do dia 07/03 ao dia 15/03, um “evento criado por Deus” (expressão do historiador Daniel Boorstin para designar acontecimentos objetivos, sem contaminação midiática), o temporal que abriu uma cratera, virou um evento mediatizado e midiático: num primeiro momento, a avaliação técnica mostrou a complexidade do problema (a galeria pluvial que impactava toda a região).
Para logo se transformar no “caos da Linha 11 da CPTM”, aglomerações, empurrões, idosos e deficientes deixados para trás etc. E o jornalismo de megafone, principalmente de Rodrigo Bocardi - “a definição do prazo foi uma cobrança nossa!”, jactava o jornalista. E a retórica simplista da tábula rasa em comparar o “buraco do metrô” com o “buraco da CPTM”.
E a estratégia de intimidação com o “Globocop” (helicóptero da emissora) sobrevoando a cratera com uma repórter alertando que não via nenhum operário no local – na verdade estava havendo uma troca de turno. Meia hora depois, outros operários já estavam no local.
Resultado: a chamada “alternativa técnica” da Secretaria de Obras da Prefeitura foi na verdade um efeito Heisenberg – uma medida decidida ao afogadilho (considere que estamos em ano eleitoral) sob uma aparência “técnica” . O que resultou num novo “evento criado por Deus”: com a galeria pluvial concretada e a cratera fechada, o bairro Artur Alvim ficou debaixo d’água, numa inédita sequência de enchentes cada vez piores.
Paradoxalmente, o efeito colateral real produzido pelo efeito Heisenberg criou um novo efeito Heisenberg: mais coberturas ao vivo sensacionais com comerciantes chorando para a câmera vendo a escala da destruição dos seus negócios e idosos (sempre eles) arriscando a saúde atravessando a rua com água até a cintura.
No limite, nessas duas semanas a mídia cobriu a si mesma: o efeito que a cobertura produz nos atores sociais, principalmente autoridades do poder público.
Mais do que uma didática demonstração dos mecanismos do efeito Heisenberg, revela também como esse “bate bumbo” do jornalismo de megafone tornou-se uma importante ferramenta na guerra híbrida brasileira cuja culminância foi o impeachment de 2016 – foi capaz de criar uma crise econômica autorrealizável (clique aqui), além de aprisionar a esquerda e os governos trabalhistas nesse gigantesco estúdio de TV do efeito Heisenberg.
A “alternativa técnica” da Prefeitura de São Paulo teve a mesma natureza reativa pela qual a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula sempre reagiram diante do jornalismo de megafone da grande mídia: sempre chantageado pela pauta hegemônica e incapaz de fazer um movimento anticíclico para fugir desse estúdio de TV a céu aberto do efeito Heisenberg.
O Efeito Heisenberg da Guerra na Ucrânia
Mesmo distante da Ucrânia, a grande mídia brasileira consegue criar efeitos Heisenberg numa guerra que ocorre a milhares de quilômetros de distância.
Um instrutor de tiro de Maringá (PR), Tiago Rossi, partiu para lutar na Legião Estrangeira na Ucrânia contra a Russa. Saiu correndo no meio do mato quando a base da Legião foi atacada por mísseis. Atônito e perplexo, descreveu: “lá tinha militares de forças especiais do mundo inteiro... todo mundo morreu... Eles (os russos) acabaram com tudo. Vocês não estão entendendo, ACABOU, ACABOU!... A Legião foi exterminada de uma só vez. Eu não imaginava o que era uma guerra...”.