CARNAVAL

Mamãe, falei: basta de objetificação feminina! Viva as mulheres!

Na semana em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher, criticando o tratamento indecoroso às mulheres, Tuta do Uirapuru traz algumas memórias carnavalescas da presença feminina no carnaval.

Ilustração: DGC.
Escrito en OPINIÃO el

Esta semana, decidi não me debruçar sobre um desfile específico, mas dedicar a coluna às mulheres, lembrando de algumas personagens importantes e passagens que marcaram a história, tendo o feminino como tema. Apenas um apanhado de fatos que representam minha humilde homenagem a elas. Muitos fatos e pessoas não serão mencionadas, por culpa absoluta da ignorância e memória falha desse que vos escreve. Ah, e quando não houver menção a um grupo específico, considere-se o grupo principal dos desfiles.

A homenagem é mais do que relevante, na semana em que ainda repercutem os áudios vazados do deputado Arthur do Val, vulgo “Mamãe Falei”, revelando seu total desprezo por mulheres buscando salvar suas vidas, em meio à guerra.

A primeira referência que trago é de 1958. Naquele ano, o Império Serrano conquistou o vice-campeonato com “Exaltação à Bárbara Heliodora”, poetisa e ativista mineira. Possivelmente, foi a primeira vez um enredo de escola de samba se debruçou sobre a vida de uma mulher. Ao menos com tanto sucesso.

Império Serrano que nos deu a primeira compositora de samba-enredo: Dona Ivone Lara, autora do samba oficial da escola em 1965. Aliás, em 2012, a escola seria vice-campeã do grupo de acesso com o enredo "Dona Ivone Lara: O Enredo do Meu Samba", de Mauro Quintaes.

Mas foi nos anos 60, com o Salgueiro, que, pela primeira vez na história do carnaval carioca, o desfile campeão seria uma exaltação a uma personalidade feminina. E negra. A conquista ocorreu em 1963, com “Chica da Silva”, de Arlindo Rodrigues. Dois anos depois, a vermelho-e-branco seria campeã novamente, com “História do Carnaval Carioca - Eneida”, de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, a respeito de uma obra obrigatória sobre a festa, escrita pela jornalista e pesquisadora brasileira Eneida de Moraes, em 1958.

A Acadêmicos de Santa Cruz, em 1970, apresentou uma homenagem mais genérica, com o enredo “Bravura, Amor e Beleza da Mulher Brasileira”, de Joceil Vargas. Infelizmente, a escola obteve apenas 37 pontos, amagando o último lugar, e foi rebaixada.

No ano seguinte, Maria Augusta Rodrigues assinou, ao lado de Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta, o enredo campeão da Acadêmicos do Salgueiro, "Festa Para Um Rei Negro". Pela primeira vez uma carnavalesca se sagrava campeã no Rio de Janeiro.

Em 1972, Carmen Miranda foi homenageada pela campeã, Império Serrano, com o enredo “Alô, Alô, Taí Carmen Miranda”, de Fernando Pinto. Bastante popular, o samba composto por Wilson Diabo, Heitor Rocha e Maneco foi lembrado por muito anos nos bailes de carnaval: “Que grilo é esse? / Vou embarcar nessa onda / É o Império Serrano que canta / Dando uma de Carmem Miranda”.

Maria Augusta foi campeã pelo Salgueiro, em 1974, novamente ao lado de Joãsinho Trinta, com "O Rei da França na ilha da assombração". Um enredo campeão assinado apenas por mulher aconteceria poucos anos mais tarde, em 1982, mais precisamente. E logo por uma dupla de mulheres: Rosa Magalhães e Lícia Lacerda, autoras de “Bum Bum Paticumbum Prugurundum”, que teve o antológico samba de Aluízio Machado e Beto Sem Braço.

Rosa Magalhães entraria, definitivamente, para a história do carnaval carioca com cinco títulos pela Imperatriz Leopoldinense (um bi em 1994/1995, e um tri, em 99/00/01) e um pela Vila Isabel (2013).

Uma das comissões de frente mais marcantes da história foi formada apenas por mulheres, todas grávidas, na Unidos de Vila Isabel, em 1989, desfile recentemente abordado por esta coluna (leia aqui). A agremiação era presidida por Lícia Maria Maciel Caniné a "Ruça", que permaneceu de 1987 a 1990 no comando, incluindo, portanto, o ano do primeiro título da Vila, em 1988, com o avassalador "Kizomba, a festa da raça".

Therezinha Monte comandou a Unidos do Cabuçu entre 1982 e 1998, sendo a responsável pelos áureos momentos da escola, entre 1984 e 1990, com memoráveis homenagens a Beth Carvalho, Mílton Nascimento, Os Trapalhões e Roberto Carlos. Sua trajetória está documentada no livro “Alma de cabrocha: Uma autobiografia cheia de samba”.

Em São Paulo, Deolinda Madre, a "Madrinha Eunice", presidiu a Lavapés entre 1937 e 1995, estando À frente, portanto, nos sete títulos conquistados, nos anos 50/60 do século passado. Laurinete Nazaré da Silva Campos, a "Dona Guga", presidiu o Morro de Casa Verde, entre 1991 e 2017. Dois nomes muito marcantes no carnaval paulistano.

Entre carnavalescos, outro nome surgiria no início dos anos 90: ao lado de seu então marido, Renato Lage, Lilian Rabelo assinou os carnavais campeões de 1990/91, pela Mocidade Independente de Padre Miguel, à época muito bem abastecida pelo patrono Castor de Andrade. Lílian chegou até a desfilar grávida.

Bloco tradicional do Rio de Janeiro, o Canários das Laranjeiras conseguiu seu primeiro título escola de samba em 1991, com o enredo "Lugar de Mulher É na História", no grupo E (última divisão). A reedição, em 2011, não teve o mesmo sucesso: apenas o 6º lugar, novamente no grupo E.

Ano passado lembramos, nesta coluna, do título paulistano da Rosas de Ouro, em 1991, com “De piloto de fogão a chefe da nação”, de Raul Diniz.

Ainda em São Paulo, o carnavalesco Wagner Santos homenageou as mulheres mais de uma vez: em 1998, com “Essas Maravilhosas Mulheres Ousadas”, com o qual a Mocidade Alegre conquistou um 4º lugar; e com “Essas mulheres brasileiras...fortes, guerreiras, talentosas e faceiras”, que deu à Sai da frente apenas o 8º lugar no grupo 4-UESP (sexta divisão).

A Acadêmicos da Rocinha conquistou o grupo B (terceira divisão) em 2001 com o enredo “E Deus criou a mulher”, de Luciano Costa.

Rainhas guerreiras do sul do Egito, conhecidas como Candaces, foram homenageadas pelo Salgueiro em 2007, com o enredo homônimo de Renato Lage, com sua nova esposa e parceira, Márcia Lage. Apesar do samba maravilhoso, a escola teve problemas no desfile e ficou apenas em 7º lugar, não voltando para o desfile das campeãs. Márcia assinou, ainda, os carnavais de 2003 a 2006, 08, e 2011 a 2017, no Salgueiro, 2018/19, na Grande-Rio, e 2020 e 2022, na Portela, sempre com Renato.

Voltando a São Paulo, a Prova de Fogo ficou com o vice-campeonato no grupo 1 da UESP (terceira divisão), com o enredo “Mulheres que Fizeram e Fazem a História do Nosso Brasil”, de Leandro Lopes. Como apenas a campeã ascendia, a escola bateu na trave.

Melhor sorte teve a Unidos de Santa Bárbara, Campeã do grupo 2 - UESP (quarta divisão) com “Mulheres que vão a Luta... Divas do meu Carnaval”, de Anderson Paulino, em 2011. No mesmo ano, no Rio de Janeiro, o Arranco terminou em 4º lugar no grupo B (terceira divisão), com "Arranco aplausos para exaltar a mulher brasileira em primeiro lugar", de Sandro Gomes, Walter Guilherme e Morgana Basto.

Alexandre Louzada deu ao Vai-Vai o 3º lugar com “Mulheres que brilham - A Força Feminina no Progresso Social e Cultural do País”, em 2012, ano em que presenciei, na Estrada Intendente Magalhães, no Rio de Janeiro, a Boca de Siri, antigo bloco, estreando como escola de samba, no grupo E (sexta divisão), e fazendo bonito: campeã com "Personalidade mulher", de Valério Guidinelle.

Mulheres “específicas” também foram lembradas, ao longo da história: mangueirenses pela Unidos de Manguinhos (“Manguinhos Canta: Mulheres Mangueirenses, Orgulho da Comunidade, Orgulho da Nação...”, de Diângelo Fernandes, 11º lugar no grupo D); baianas, pela Acadêmicos do Sossego, em 2013 (“De Luiza D’Oyá a Carmem Miranda. O que é que a Baiana Tem?”, de Paula Vannier, 5º lugar no grupo B); negras, na Império da Tijuca, em 2013 (“Negra Pérola Mulher”, de Júnior Pernambucano, campeã da série A), brasileiras, na Mangueira, em 2015 (“Agora Chegou a Vez Vou Cantar: Mulher de Mangueira, Mulher Brasileira em Primeiro Lugar!”, de Cid Carvalho, 10º lugar) e portelenses, pela escola-mirim da Portela, Filhos da Águia, em 2017 (“Mulheres Notáveis do Reino da Águia”).

Imperatriz da Sul (“Agora é que são elas! A história das mulheres que mudaram a história!”), Imperatriz da Pauliceia (“Agora chegou a vez vou cantar, mulher de verdade em primeiro lugar”, de Kaddú Nunes) e Tradição Albertinense (“Agora chegou a vez vou cantar, mulher brasileira em primeiro luga”, de Rômulo Camargos) não tiveram muita sorte pelos grupos de acessos paulistanos em 2017. Pior foi com o Gato de Bonsucesso, em 2018, última colocada do grupo E, última divisão, em 2018, com “Mulher, mulher, mulher”, de Marcos Salles.

E tivemos Bianca Behrends integrando a comissão de carnaval da Beija-flor, campeã em 2018.

Vale mencionar a tradição paulista com puxadoras de samba-enredo: Eliana de Lima (Príncipe Negro, 1980, Unidos do Peruche, 1985/88, 90 e 2002/003, e Leandro de Itaquera, 1989, 1992/95 e 1999/00), Bernardete (Barroca Zona Sul, 1994/97), Márcia Ynaiá (Nenê de Vila Matilde, 1993), Cláudia França (Morro de Casa Verde, 2001/02) e Pindá (Brasil, de Santos/SP), entre outras como, mais recentemente, Grazzi Brasil (Vai-Vai, São Clemente e Paraíso do Tuiuti, as duas últimas, do Rio de Janeiro).

Não podemos nos esquecer que a origem das escolas de samba deve muito às reuniões promovidas por Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata no quintal da casa na Praça Onze, no Rio de Janeiro. Não à toa, as escolas de samba devem apresentar, obrigatoriamente, uma ala de baianas, homenagem direta a Dona Hilária.

Passistas, baianas, destaques, bailarinas, costureiras, porta-bandeiras, coreógrafas... a todas as mulheres que contribuem com nossa festa mais tradicional, deixo meu carinho. Principalmente àquelas que, por imperdoáveis lapsos de memória ou conhecimento desse autor, não tenham sido mencionadas nominalmente, ainda que notórias suas contribuições.

Homenagem mais que necessária em tempos do mais misógino Presidente da República, que faz questão de andar sempre cercado de homens, e não perde a oportunidade de destratar as mulheres que se aproximam dele.

Aquele que disse que mulheres devem ganhar menos, porque engravidam; que turistas que quisessem vir ao Brasil fazer sexo com mulheres, poderiam ficar à vontade; que uma deputada não merecia ser estuprada, por ser muito feia; que teve quatro filhos e uma filha, porque “fraquejou” ao concebê-la. Entre outras barbaridades, inexplicavelmente normalizadas por boa parte da sociedade brasileira.

Enfim, parabéns a todas as mulheres, ligadas ou não ao nosso carnaval. Contem sempre com os homens de verdade, na luta por igualdade de direitos, ainda muito distante de ser vencida.

Vai passar.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.