Vou contar aqui um pouco sobre o carnaval de São Luiz do Paraitinga.
Em tempos de Covid, Bolsonaro e Guerra na Europa, falar de um carnaval que não vai ter este ano, pelo menos nos dias que seriam oficialmente destinados à festa, parece uma fuga, uma alienação, não é?
Eu não esperava chegar vivo ao século XXI, mas “se chegasse”, iria ser para ver um mundo sem calamidades, sem extremistas fanáticos no poder e sem guerras, especialmente de guerra por conquista ou disputa de territórios.
Teria errado feio. Covid, Bolsonaro e a questão da Ucrânia estão aí para me desmoralizar como vidente.
Então, no meio de tantas tragédias, o desafogo do carnaval está fora de questão. Pena. A gente precisa de desafogos. Se vivermos 24h por dia, 365 dias por ano só nos dedicando a amarguras e tristezas, que vida ruim! A alegria, às vezes, é subversiva.
Participei de muitos bons carnavais, em blocos de rua, os chamados “blocos de sujo”, do tipo que entra quem quer, e não eram esses com dezenas ou centenas de milhares de pessoas. Bloco de sujo mais divertido é coisa de pequenos grupos, coisa que para muita gente não existe mais hoje em dia. Para muitos, ao contrário, quanto mais gente, maior é o sucesso de um grupo. E não tem sentido sair com um grupinho cantando e dançando. Bom, não penso em “sucesso” e sim em diversão, alegria...
Vamos ao carnaval luizense.
Em 1979, soube que o Américo, amigo e ex-colega do curso de Geografia, estava morando em São Luiz do Paraitinga. Fui lá algumas vezes em 1980, me hospedando com namorada e amigos na chácara do Américo, pois só havia dois hotéis bem simples na cidade. Ser simples não incomodava, mas o fato de ter um só banheiro em cada hotel às vezes complicava, especialmente para bebedores de cerveja. E esse banheiro único servia também para banhos. Tomar banho ou usar o banheiro para outros fins ficava difícil.
Numa dessas estadas em São Luiz, um grupo de jovens, incluindo os que depois formariam o excelente grupo musical Paranga, discutiam a questão do carnaval. No início do século XX, contavam os que tinham informações históricas, a cidade muito pequena e isolada tinha um carnaval bem animado.
Mas em 1920 um padre contrário à festa proibiu o carnaval, e a população muito católica obedeceu. E lá se foram 60 anos sem carnaval. Uma sucessão de padres continuou proibindo a festa e a população continuava obedecendo. Os jovens resolveram que peitariam a proibição no carnaval de 1981. E eu embarquei nessa.
Ainda no final de 1980 começamos a nos preparar. O Américo ofereceu a chácara para hospedar a minha turma e lá, por iniciativa e sugestão dele, criamos o bloco “Peida N’Água”. O próprio Américo providenciou um estandarte, que era branco, com o desenho de meio corpo de uma pessoa mostrando a bunda dentro de uma bacia cheia de água e borbolhas saindo dela...
Na sexta-feira que antecedeu o carnaval, à noite, chegamos lá, minha namorada, eu e mais alguns amigos. Bebemos até de madrugada e acordamos meio de ressaca. Tomando café, o Américo já cobrou: “Temos que compor uma marchinha...”. Ele e eu compusemos, não me lembro qual era o tema.
No início da tarde de sábado, uns oito ou dez integrantes do bloco Peida N’Água, depois de ensaiar um pouco, saímos da chácara em direção à praça, a uns 600 metros de distância, cantando acompanhados por um único instrumento musical, um saxofone. Fomos cantando e dançando, sem pressa, e algumas pessoas foram se juntando a nós, inclusive músicos. No meio do caminho, morava um homem que tinha as pernas “entrevadas”, e “andava” sentado no chão, impulsionando o corpo com as mãos, apoiadas em duas peças feitas especialmente para ele.
Vestiu uma fantasia de sapo e entrou no grupo, pulando.
Quando chegamos à praça, já éramos mais de cem pessoas, com vários instrumentos musicais. Os carnavalescos que se juntavam aprendiam a música de ouvido e embarcaram na festa. O bloco chegou a ter umas trezentas pessoas.
Mais tarde saiu um outro bloco um pouco maior, o Encuca a Cuca, e o engrossamos também. Este tinha duas figuras “alegóricas”, um boi (tipo boi bumbá) e uma cobra. O boi exigia duas pessoas: uma ia de pé, na frente, e atrás uma pessoa “encurvada” para fazer o papel de corpo do boi. Saí uma vez como cabeça do boi e outra como bunda. Suei tanto que precisei de muitas cervejas para repor a hidratação (re-re...). O da cobra eram várias pessoas embaixo de uma cobra grande, feita de balaios, como aquelas das festas chinesas.
No ano seguinte, nós estávamos lá de novo. Chegamos sexta-feira à noite, compusemos uma música no sábado de manhã. Saímos à tarde e foram se juntando pessoas, inclusive o homem fantasiado de sapo, como no ano anterior. E participamos de novo não só do Encuca a Cuca, mas também de outros blocos que foram surgindo.
No terceiro ano do carnaval, resolvemos inovar na música: em vez de compor uma marchinha, decidimos sair cantando uma musiquinha infantil: “A baratinha iaiá, a baratinha ioiô... / a baratinha bateu asas e voou”. Sucesso de novo. E já havia muitos outros blocos.
No quarto ano, inovamos de novo: vamos de bolero. E saímos cantando “Maria Helena és tu / a minha inspiração...”. E dançando bolero, em pares ou sozinhos.
Saímos mais dois anos. Num deles a marchinha foi homenageando o Plínio, um rapaz de São Paulo que acampou na chácara do Américo. Nosso amigo havia limpado uma parte da chácara para que fossem montadas lá umas dez barracas, pois ainda não havia hotéis e pousadas para hospedar a turma que ia para lá. Podiam armar barracas nesse espaço e usar o banheiro e a cozinha da casa dele.
O Plínio pensou: “Vou levar umas coisas para colaborar com a alimentação da turma”. E levou: meia dúzia de caquis, umas dez peras, uma dúzia de laranjas, uma penca de bananas... tudo o que tinha sobrando na chácara. Pereiras carregadas, caquizeiros também, laranjeiras, bananeiras... Virou gozação. Cada pessoa que pegava uma fruta qualquer, dava uma mordida e falava: “Ah, se não fosse o Plínio...”, sugerindo que passaria fome. E a nossa marchinha desse ano foi “Ah, se não fosse o Plínio”.
Bom... Aí começaram a querer organizar o carnaval. Carnaval organizado, pra mim, não é carnaval. Blocos tinham que se inscrever na Prefeitura, criar fantasias próprias e não permitir que qualquer um entrasse neles sem fantasia. Até concurso, tinha. Não era o que queríamos. O Peida N’Água acabou aí, e eu parei de ir ao carnaval luizense.
Depois acabou essa burocracia, e o carnaval da cidade ficou famoso, só com marchinhas, ótimos músicos, ótimos compositores, e atrás de cada bloco ia quem queria. Milhares de pessoas.
Continuei não indo. Fila pra comprar cerveja, fila grande para uma mesa num bar ou restaurante, fila para usar o banheiro... Não é comigo.
Mas o sucesso continuou, com cada vez mais gente... Milhares e milhares de pessoas. Em 2010, quando as chuvas destruíram parte da cidade, não houve carnaval oficial, mas um grupo saiu tocando e dançando como nós fazíamos no começo, sem aparelhos de som, e contam que os jovens mesmo acharam que era muito melhor o carnaval daquele jeito.
E em 2011 já estava de novo o carnaval a todo vapor. A pandemia impediu a festa em 2021. Fizeram uma festa clandestina numa casa e quase todo mundo que participou se contaminou, passando a contaminar também quem não estava lá. Nessa, minha amiga Alice, presidente da Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) foi contaminada e morreu. Um grande músico e bom amigo, o Nhô Lâmbis, também. Tristeza imensa.
E a tristeza tende a se estender: esperavam o fim da pandemia e a realização da festa agora, mas não foi isso que aconteceu. E espero que não tenha festa clandestina de novo, para contaminar os outros.
Os tempos são de Covid, Bolsonaro e guerra na Europa... Não sei que trolha pode vir mais. Está faltando o Carnaval.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.