Uma das principais características da crise democrática em curso no Brasil é a rotinização do momento político/eleitoral.
Explico.
Em uma democracia liberal-representativa saudável (como aquela prevista em nossa constituição), o processo político se divide em dois momentos:
1°) O momento político/eleitoral, marcado pela agitação social, pela participação dos cidadãos e pela disputa aberta pelo poder. Aqui, candidatos se ofendem, se xingam e até mentem, tudo dentro de limites algo elásticos e previstos pela legislação especializada. Uma vez terminada a disputa, vencedores governam e derrotados, quando não cooptados, fazem oposição. Os derrotados reconhecem a derrota, pois sabem que já chega o momento da nova disputa. A janela de acesso ao poder não está fechada para sempre.
2°) O momento político/administrativo, quando o palanque é desmontado, a sociedade desmobilizada e a disputa passa a ser travada entre políticos profissionais. Aqui podemos falar em certa “autonomia” da política institucional, na medida em que os eleitores, na posição de indivíduos privados, estão ocupados cuidando de seus assuntos domésticos. É isso que chamam de "estabilidade política".
Os limites desse modelo de democracia vêm sendo apontados, e denunciados, desde o século XIX por autores bastante diferentes entre si. De Toqueville a Ranciére, passando por Marx. Mas não estafo o leitor e a leitora com isso não. Nem é importante pra reflexão que proponho.
Meu argumento é simples, até um tanto óbvio pra qualquer observador minimamente atento à cena política nacional: não vivemos numa democracia liberal-representativa saudável, pelo menos desde 2014, quando Aécio Neves (PSDB) rompeu o pacto e se recusou a reconhecer a derrota. O que aconteceu de lá pra cá já é história conhecida.
Nos últimos anos, vivemos em constante momento político/eleitoral. Ninguém mais governou. Ninguém mais fez oposição. Todos estiveram empenhados em disputar o poder, em mobilizar a sociedade.
Sergio Moro já manifestava ambições presidenciais quando ainda era juiz. Lula fala como presidenciável desde que estava no banco dos réus, de frente para Sérgio Moro. Ciro Gomes já se lançou candidato em 2016. Jair Bolsonaro jamais desmontou o palanque, jamais se preocupou em governar.
Por isso, não surpreende que todos estejam em campanha eleitoral antecipada. E as autoridades eleitorais ignoram, fazem vista grossa. O jogo está bagunçado mesmo. Essa é a “crise”.
Nesse largo momento político/eleitoral, circulam pela sociedade três teses sobre o país, cada qual sendo defendida por aqueles que estão diretamente envolvidos na disputa pelo poder.
- Jair Bolsonaro e Sérgio Moro disputam o controle da mesma tese, que define o sistema político instituído pela constituição de 1988 como estruturalmente corrompido. Bolsonaro leva muitas vantagens sobre Moro. É mais carismático, mais experimentado na atividade política, domina bem o palanque. Bolsonaro conseguiu, ainda, turbinar a tese e convenceu parte considerável da população de que somente o Presidente eleito pelo voto popular representa, de fato, o “povo”. Todas as outras instituições da República, sobretudo o poder judiciário, estão corrompidas e corrompem a democracia, atrapalhando a ação daquele que seria o único poder legítimo. Assim, Bolsonaro forjou a imagem do “presidente outsider”, que mesmo ocupando o topo do poder se afirma como antissistêmico, como vítima do sistema. A manutenção de 20% de apoio popular convicto mesmo depois de tudo o que aconteceu nos últimos três anos mostra que a tese da disruptividade ainda é forte e capaz de fazer com que Jair Bolsonaro seja eleitoralmente competitivo.
- Ciro Gomes também investiu na tese da disruptividade, mas em termos bem diferentes da lógica bolso-lavajatista. Falando em um “projeto nacional de desenvolvimento”, Ciro nega que existam diferenças substanciais entre os governos dos tucanos, dos petistas, de Temer e do próprio Bolsonaro, que seriam todos parte de um mesmo ciclo de rapina financeira. Antes de serem adversários, seriam cúmplices de uma conspiração neolbiberal que desindustrializou o Brasil e jogou nosso povo na pobreza. Disruptivo mesmo, então, seria ele, Ciro Gomes, com seu projeto desenvolvimento nacional autônomo e sustentável. Apesar dos méritos da tese, o vocabulário tecnocrático dificulta a capilaridade do argumento e Ciro vem derretendo nas últimas pesquisas. A sensação que dá é que aqueles que ainda declaram voto no político cearense o fazem mais por ressentimento ao PT do que pelo mérito da tese. Receio que em eventual segundo turno entre Bolsonaro e Lula, não pensariam duas vezes antes de anular o voto ou até mesmo votar em Bolsonaro. Na política, o ressentimento é um dos afetos mais perigosos, e mais previsíveis também.
- Lula personifica a tese que, a julgar pelas pesquisas, é a favorita para vencer as eleições. Apontando para a reconciliação e para a pacificação, o petista pretende convencer a sociedade de que a vida era melhor quando tudo estava no seu devido lugar, nos termos previstos pela constituição de 1988. Lula tenta recuperar a alegoria do “Brasil família unida”, tão evocada durante os seus governos, com o objetivo de sustentar a ideia de que a paz social e política é a premissa para o bem-estar material. O objetivo é diluir os conflitos na grande síntese de uma nacionalidade pretensamente harmônica e cordial. A tese é conservadora, no sentido literal do termo, pois pretende conservar um determinado estado de coisas (o contrato social instituído pela carta de 88) por entendê-lo como mais adequado ao país. Lula, portanto, não é exatamente um candidato das esquerdas. É o candidato do sistema desestabilizado pela disruptividade bolso-lavajatista. Por isso, a aliança com Alckmin faz todo sentido. Você, leitor e leitora de esquerda, podem até não concordar. Mas que faz sentido, ah faz.
Muito provavelmente, a disputa será polarizada entre a disruptividade bolso-lavajatista e o conservadorismo lulista. A exemplo do que fez em 2018, Bolsonaro continuará apontando para o futuro, pedindo mais tempo para sanear o país e derrubar de vez o “sistema corrupto” que não teria lhe deixado governar no primeiro mandato.
Lula evocará a memória dos "bons tempos", da massificação do consumo, apostando no cansaço da população depois de quase 10 anos de constante agitação e conflito.
Bolsonaro continuará agitando e mobilizando. Lula tentará devolver ao cidadão a paz e a tranquilidade para voltar a se preocupar com seus assuntos domésticos, com um mínimo de previsibilidade e conforto material.
Qual tese sairá vitoriosa das urnas é a pergunta de 1 milhão de dólares. Se o processo eleitoral acontecerá dentro da normalidade e se os derrotados aceitarão o resultado são dúvidas que inspiram bastante preocupação.
Certeza mesmo é que a disputa não acaba com o fim das eleições, mesmo com a vitória de Lula. Ainda por um bom tempo, viveremos em crise, sem conseguir descansar. Agitados, mobilizados. Esgotados. Ansiosos.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.