Belíndia
Ao contrário do (neo)liberalismo, o fascismo costuma ser sincero em seus propósitos de odiar, segregar e matar. Tais costumes, porém, são facilmente adotados pelos neoliberais, sempre que conveniente.
Bolsonaro jamais ocultou o desejo de devolver o Brasil ao despotismo de 1964-1985, regime que intensificou a desigualdade social e em 21 anos reduziu o salário mínimo a um quadragésimo de seu valor real. E os neoliberais, que lucram enormidades com a concentração de renda, concordam com o retrocesso, embora finjam que não.
Em 1974, aos dez anos da ditadura incensada por uns e outros, o economista Edmar Bacha imaginou a “Belíndia” como síntese do projeto de Brasil dos boçais fardados: uma minoria com padrões da Europa Ocidental (Bélgica), em meio a uma maioria de miseráveis (Índia).
Belíndia é uma ferramenta útil à compreensão da guerra civil travada por ricos contra pobres, conflito que aqui significa a agressão contínua da Bélgica brazuca à Índia tupiniquim. Contudo, um outro acordo semântico é indispensável.
Acordos semânticos
Precisamos falar sobre “nazismo” – muito em voga na Belíndia após falas de imbecis, célebres ou anônimos – e fascismo. A ideologia é uma só. Nazismo é o nome da manifestação alemã do fascismo, derivado do título do partido de Hitler, ídolo de Bolsonaro.
O fascismo alemão imitou o pioneiro italiano nas práticas da manipulação das massas pelo ódio a um inimigo construído; da violência e morte como meios políticos legítimos; do genocídio; e do concubinato liberal-econômico. A diferença entre um e outro não vai além de língua e estilo. Um é Wagner, outro é Puccini, e ambos compõem ópera.
A distinção que realmente importa não é entre nazismo e fascismo – sintomas da mesma doença - e sim entre nossas Bélgica e Índia, discrepância que se evidencia inclusive na mais benévola das leituras, segundo a qual os belgas dos trópicos são 6% dos nativos de Belíndia e a Índia auriverde tem 47% da população.
Acontece que nessa visão amena os outros 47% dos belindianos integram a pitoresca classe média, aquela que vive com o corpo submetido às vicissitudes indianas, enquanto a cabeça acredita piamente estar na Bélgica.
Declaração de guerra
Quais são as diferenças objetivas? Aqueles 6% de belgas da ponta da pirâmide têm 40% da renda da Belíndia e ganham 40 vezes o que os indianos recebem. Ocorre que a parasita Bélgica, ávida e avara, gosta de pensar que carrega a hospedeira Índia nas costas, e a partir dos anos de 1990 declarou guerra aos pobres.
Guerras têm avanços e recuos, e a educação de indianos conseguiu entrar na agenda de Belíndia de 2003 a 2015. Foram fixados parâmetros nacionais de qualidade para a ensino fundamental, quintuplicadas as vagas públicas de escolas técnicas, duplicadas as de nível superior e modificadas as centenárias cotas étnicas e sociais que garantiam a hegemonia belga nas universidades federais belindianas.
A reação da Bélgica não veio a cavalo e sim encarnada num equino. O orçamento da educação foi congelado por 20 anos e depois reduzido a menos do que o leite moça dos milicos.
O resultado se vê em 2022, com 5 milhões de crianças sem qualquer atividade escolar em 2021, metade das quais analfabeta apesar da idade.
Saúde
Previdência e saúde dos belindianos também são cruelmente assaltadas pelos belgas. Somente 3% conseguem viver da aposentadoria e estes estão na Bélgica. Os 97% que precisam trabalhar até morrer confinam-se à Índia.
Em termos de morte, a Índia contabilizou perto de144 mil óbitos no primeiro mês de 2022, o janeiro mais letal da história do Brasil desde que o tal governo de 2003-2015 obrigou os cartórios a fazer as contas.
Dos falecidos em número recorde, a parcela de negros é 60% maior do que a média da Belíndia. E ao analisar essa média se descobre que a expectativa de vida da Índia recuou 3 anos sob Bolsonaro e que hoje as mulheres na Bélgica vivem 83, ao passo que os homens na Índia estancam nos 68 anos.
Acuado pela matança e pela destruição do que é público, o povo da Índia forneceu aos mercadores de medicina 1,5 milhão de novas adesões contratuais no ano passado, o que produziu novos bilionários belgas.
Escravidão
Na frente do trabalho, a determinação da estratégia de guerra belga é a normalização da escravidão, chaga nunca debelada na Índia, não obstante as resolutas escaramuças de uns poucos servidores, a despeito do fascismo.
Em 2021 a Índia libertou uns 2 mil cativos, coagidos a ralar em troca de comida nas lavouras de café, alho e cana, no carvão vegetal e na pecuária, mas não só. Há também o caso recorrente de bolivianos e peruanos escravizados na maior cidade da Belíndia, justamente para produzir roupas de marca para as madames belgas.
Curiosamente, toda vez que a Índia relembra o extermínio de três daqueles servidores, no que se tornou o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, o faz sem mencionar a culpa da Bélgica neste e em vários outros crimes.
Crimes que, aliás, em geral são “recados” da Bélgica, condescendentes advertências à Índia para que permaneça quieta e não se intrometa nos negócios belgas. O mais recente foi o assassinato do sem-terrinha Jonatas, de 9 anos, morto por pistoleiros no refúgio da cama da mãe, em Barreiro, PE.
Exemplarmente zeloso para com a hierarquia belindiana, Bolsonaro resolveu dar institucionalidade ao trabalho forçado com o Programa Nacional de Serviço Civil Voluntário, vulgo Pró-escravidão. Todavia, isso não basta para saciar a predileção belga por carne humana.
Assim, sacerdotes belgas do Deus-Mercado, reunidos em 11 de fevereiro na federação do comércio, declararam querer aprofundar a reforma escravizadora de 2017, de modo a “equiparar trabalhadores formais e informais”. Antes que alguém se comova com tão pungente defesa da igualdade, entenda-se que a intenção é nivelar a todos em “contratos” escravizadores.
Capitães do mato
Claro, para que belgas escravizem indianos é necessária a gentil colaboração de indianos cooptados e, sobretudo, é imprescindível a viril contribuição dos capitães do mato. Lástima das lástimas, Bolsonaro é exatamente o presidente dos capitães do mato e por isso avultou verba e imunidades das forças de segurança da Bélgica. O tratador precisa mimar a matilha.
Como bons sabujos, os capitães do mato suprem a carência congênita com agrados aos belgas, na forma do cancelamento de CPFs indianos, seja no atacado das “incursões punitivas” ao Jacarezinho, à Vila Cruzeiro, e a outras comunidades indianas; seja no varejo dos homicídios do vizinho do sargento da Marinha, do vendedor de balas na estação das barcas, ou do hiperexplorado Moïse Kabagambe.
Não por acaso todos, ou quase todos os alvos de “cancelamento de CPF”, são da cor em que o guarda Belo não acreditava, na canção de 1973 dos Secos e Molhados. Isto porque Bélgica, Bolsonaro e o guarda Belo querem os pretos assados.
Por que Bélgica?
As bélgicas, brasileira e demais, honram o legado da original, revolucionariamente emancipada da Holanda em 1830, reino que cedo evoluiu de oprimido para opressor e se fez a mais desumana metrópole colonial do século XIX.
Garroteado de 1885 a 1909 pelo rei Leopoldo II, o Congo foi a grande reserva de caça do soberano de valões e flamengos, que não raro se divertia com a tortura e morte de congoleses. Era usual que os cristãos belgas amputassem as mãos e braços de crianças, em represália ao baixo desempenho das aldeias, quando as metas de produção de marfim ou de borracha, estabelecidas pelos brancos, não eram alcançadas.
De 1909 a 1960 o país africano deixou de ser propriedade pessoal do monarca para virar uma colônia na qual o trabalho forçado de negros era legalizado em “contratos” de 7 anos de duração. Estima-se que 15 milhões de colonizados tenham sido massacrados pelos avançados europeus, em 75 anos de dominação belga no Congo.
Trevas
Em 1889 Joseph Conrad retratou parte do horror aplicado pela Bélgica ao Congo, no livro “Coração das Trevas”, libelo de uma campanha contra o imperialismo presente em a todas as relações belgo-indianas.
Graças a seu universalismo, “Coração das Trevas” foi genialmente adaptado para o cinema em 1979, ambientado na Guerra do Vietnã (“Apocalypse Now”, de Francis Coppola), com o horror belga substituído pelo americano.
Há quem diga que o roteiro do filme descreve mais precisamente do que o livro de Conrad o horror funcional característico. Horror reeditado nos “recados” que, como mencionados, incluem a execução imperial do jovem refugiado congolês. Jovem que, já morto, continuou a levar pauladas do presidente da Fundação Palmares, para quem andar com gente de bem é se juntar à Klan dos chefes da milícia.
É a memória congolesa o que faz a Bélgica de hoje, do rei Filipe, renegar seu imperialismo de outrora e se pretender um modelo de diversidade. De fato, sinalizam até romper com a escravidão neoliberal e adotar a semana de trabalho de 4 dias.
Ocorre que esses esforços não resistem a um ligeiro arranhão no verniz de chocolate, sob o qual os belgas escondem Jairinhos e outros monstros. O reino não passa um ano sem um grande caso de pedofilia, o último culminado na morte do menininho Dean, de 4 anos de idade, um mês atrás.
Veneno
Pedofilia que se combina com falta de democracia. Dos 20 países de melhor desenvolvimento humano no globo, a monarquia belga e seus 9 milhões de súditos formam o único que não figura como “democracia plena” no índice respectivo de “The Economist”, além da China. E – desgosto do semanário liberal – o mais grave dos atuais problemas da Bélgica é fruto do liberalismo.
Por 20 anos o governo belga ignorou os alertas de ambientalistas quanto à poluição do solo e do rio Escalda, causada pela americana 3M. O caso agora é o escândalo belga do momento, estampado na recomendação de não se comer nada plantado, nem se consumir laticínios e ovos, num raio de 15km da área poluída.
A captura dos órgãos fiscalizadores das diversas índias, pelo livre mercado das várias bélgicas, é a real causa da poluição com pesticidas e fármacos, crítica em cursos de água doce na Amazônia e na Bolívia, Etiópia, Quênia, Paquistão, Laos e no norte da África, onde o rio Azul, em Túnis, apresenta quadro extremo. Isso inclui as nórdicas Islândia e Noruega. Tornaram-se belíndias ambientais.
Em Pindorama a regra foi obscenamente incorporada num ministro do meio ambiente que negociava a exportação de madeiras ilegais e em Tereza Cristina, santa padroeira do livre mercado envenenador e desmatador. Musa radical dos agrotrogloditas, articula-se que TC se torne a futura vice na chapa fascista de Bolsonaro.
Outras belíndias
Entretanto, o pavilhão do orgulho belgo-brasileiro esvoaça alto com os exemplos de fora. Envenenar rios e brutalizar indianos é coisa de primeiro-mundistas nórdicos, pois tanto quanto Islândia e Noruega sabem envenenar, a Dinamarca mostrou saber colocar os não-belgas no devido lugar.
Em novembro de 2021 civilizados militares dinamarqueses combateram, mataram e feriram piratas no Golfo da Guiné (o pedaço africano que corresponde ao recorte do litoral do Ceará). E, belgas que são, abandonaram três sobreviventes num pequeno bote inflável, em alto mar. Afinal, por que a Bélgica perderia tempo e dinheiro para julgar negros indianos?
No mês seguinte, no Reino Unido, relatório governamental apontou haver trabalho escravo em cada unidade administrativa britânica e presumiu o total de escravizados em no mínimo 10 mil, 45% dos quais crianças.
Salta aos olhos que, se nas industrializadas terras da rainha Isabel 2ª, com 30% da população de nossa desindustrializada Pindorama, existem dez milhares de escravos, os 2 mil libertados em 2021 são uma irrisória ponta do total de subjugados no Brasil.
E, além do Reino Unido, no velho continente outras belíndias apresentam casos notórios de escravidão na Romênia, Grécia, Itália e Bulgária, seguidas de República Tcheca, Hungria, Croácia e Suécia (faltava ela), cabendo à Moldávia o lugar de destaque na escravização sexual.
Guerra mundial
O panorama demonstra que não se trata de uma briga de torcidas e nem sequer de uma contenda regional. A brutalidade visível do fascismo brasileiro é extrema, mas não é uma jabuticaba.
É episódio de uma guerra global de bélgicas contra índias, de ricos contra pobres. Guerra bárbara e cotidiana, velada pela hipocrisia que liga nossa tosca pseudoelite ao que há de pior no gênero humano.
Nessa guerra não há quartel, mercê, nem trégua possível. Ou cancelamos a Bélgica, ou a humanidade caminhará bovinamente ara o matadouro.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.