Estreou nesta sexta-feira (19), na Netflix, o filme “Mães Paralelas”, nova obra de Pedro Almodóvar que usa a metáfora das mães para tratar dos “desaparecidos” políticos da Guerra Civil Espanhola (1936-39) e da subsequente ditadura de Francisco Franco (1939-1975), que foram enterrados em fossas espalhadas por todo o país.
O longa também representa a preocupação política do diretor com a ascensão da extrema direita em seu país e no Ocidente e, de quebra, rendeu à Penélope Cruz a indicação na categoria de Melhor Atriz ao Oscar 2022.
Seria injusto com a cinegrafia de Almodóvar afirmar que “Mães Paralelas” é o seu filme mais político, até porque, quem acompanha o trabalho do diretor espanhol sabe que todas as suas obras são políticas, até as comédias tresloucadas o são, pois, em sua longa carreira, o cineasta sempre utilizou as suas lentes para tratar dos corpos e vidas considerados “anormais” pelo pensamento conservador.
Em seus dez minutos iniciais, Mães Paralelas já diz a que veio: Janis (Penélope Cruz) é uma fotógrafa a coordenar um ensaio com Arturo (Israel Elejalde), antropólogo forense. Após a sessão de fotos, os dois vão tomar um café e a mulher quer saber se ele pode ajudá-la a cavar a fossa onde o seu bisavô e amigos, que foram mortos pela Falange Espanhola, grupo fascista que atuou na Guerra Civil (1936-39), estão enterrados.
A sequência do diálogo também mostra onde Almodóvar está posicionado politicamente: Arturo explica à Janis que o governo de Mariano Rajoy (ex-primeiro-ministro conservador que caiu mediante denúncias de corrupção) acabou com o financiamento dos trabalhos de localização das fossas e identificação dos mortos políticos.
Em 2020, o governo de Pedro Sánchez (PSOE) se comprometeu com todos os familiares dos mortos políticos pela ditadura espanhola a dar sequência ao trabalho de localização e abertura das fossas, que foi interrompido pelo governo de Rajoy (PP). Até este momento cerca de 6.300 pessoas jogadas em fossas comuns foram encontradas, destas, 2.500 já foram identificadas.
Com isso, Almodóvar quer tratar de uma fossa histórica e um luto interminável que não permitem a Espanha avançar de vez e pior, que permitem o surgimento de grupos como o Vox, que defendem a ditadura franquista e, na última eleição conquistaram cadeiras no Parlamento do país.
A diferença de Mães Paralelas para os outros filmes de Almodóvar é que agora o diretor espanhol sabe que o Ocidente vive um momento crucial de sua história: há chances de enterrar os horrores do franquismo e do fascismo, mas também paira a iminência de cair, novamente, nas mãos da “cadela do fascismo que está sempre no cio”.
As mães e o luto interminável
Há um diálogo emblemático entre Janis e Ana (Milena Smit) que retrata a outra esfera da história contada por Almodóvar, no caso, o “esquecimento” dos horrores produzidos pelo fascismo espanhol. A jovem de 20 anos não entende a obsessão da fotógrafa, uma mulher de 40 anos, em abrir a fossa onde o seu bisavô está enterrado. A resposta da personagem aos questionamentos de Ana sintetiza o objetivo político do filme:
“Está na hora de você saber em que país mora. Parece que a sua família não te contou a verdade sobre o país. Há mais de 100 mil desaparecidos, enterrados por aí, em valas e perto de cemitérios. Seus netos e bisnetos querem poder desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno, porque prometeram isso às suas mães e avós. E, até fazermos isso, a guerra não terá acabado. Você é nova, mas está na hora de saber onde seus pais e sua família estavam nessa guerra. Vai te fazer bem saber para poder decidir onde quer estar".
Aos 72 anos de idade Almodóvar sabe que o tempo urge e que há uma geração que não conviveu de perto com os horrores do fascismo. Sabe também do perigo que representa a ascensão de grupos como o Vox, de como jovens sem referenciais históricos se tornam alvos fáceis de uma raiva que parece, à primeira vista, ser a solução para resolver os problemas de um país, mas não é, aqui estamos diante da farsa histórica de Marx. "Mães Paralelas" é um manifesto político contra o fascismo de ontem e hoje.
Por fim, não é à toa que Almodóvar usa uma citação de Eduardo Galeano, jornalista e militante político que durante toda a sua vida atuou e denunciou os horrores das ditaduras na América Latina e no mundo, nos créditos finais: “Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a ficar calada".