A cena a seguir, fictícia (?) se passa na capital da Bahia, no ano de 2035, quando um guia turístico apresenta a cidade a um turista recém-chegado à cidade:
“- Bom dia, meu súdito! Antes a gente falava “meu Rei”, mas Rei é só o Senhor Jesus! Bem-vindo à capital da Bahia, a cidade de Jesus Cristo Salvador. Hoje acompanharemos um dos eventos mais simbólicos de nossa cidade, a lavagem da escada da Igreja Universal, onde os obreiros lavam as calçadas com água ungida do Rio Jordão e vendem as famosas fitinhas do Rei Davi, depois iremos ao Farol Jesus Luz do Mundo, que é o lugar onde os trios de louvor terminam o Espiritoval, festa que sucedeu ao antigo carnaval, aleluia! Lá você pode experimentar os deliciosos bolinhos de Jesus da Irmã Cirinha, que antes eram chamados de acarajé, mas como era uma comida amaldiçoada por demônios, agora não oferecem perigo algum. No fim de tudo iremos ao Pelourinho, onde, no passado, nossos missionários repreendiam, no Senhor, os negros malditos e desobedientes para que fossem purificados e disciplinados! Espero que gostem do passeio abençoado!”
Parece ficção? Pode não ser tanto assim... os “Bolinhos de Jesus”, por exemplo, só não vingaram por força de uma liminar que proibia o “rebatismo” dos famosos Acarajés baianos, iguaria ancestral e dedicada a Iansã, patrimônio da cultura brasileira. As rodas de capoeira gospel também já existem aqui e acolá, mudando as letras para “louvores a Jesus” e tirando da dança/luta todo seu sentido de insurreição, revolta e resistência.
Agora, um projeto apresentado pelo vereador evangélico Isnard Araújo, do PL, vai mais longe: pretende renomear parte das famosas e consagradas Dunas do Abaeté, em Itapoã, como “Monte Santo Deus Proverá”, pois segundo o edil, seria uma forma de homenagear pentecostais e neopentecostais que frequentam o lugar: "homenagear cada pessoa que professa sua fé e realiza seus cultos no local", disse o vereador. Já dá pra imaginar os versos de Vinícius e Toquinho revisitados pela cultura gospel:
“Enquanto o mar inaugura
Um verde novinho em folha
Evangelizar com doçura
Com um guaraná de rolha
E com um olhar esquecido
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo
A terra toda louvar!”
Acontece que o Abaeté é um lugar, ainda que público (e, sim, evangélicos o utilizam sem problemas) sagrado para as religiões de matrizes africanas, principalmente os candomblecistas locais. Isto sim seria uma invasão de local sagrado com fins políticos, e não o protesto em Curitiba, tão rechaçado por alguns, que não passou de uma ocupação de um lugar de culto onde negras e negros (ainda que responsáveis pela construção) tiveram o seu direito ao Sagrado negado por séculos, por uma cristandade branca e escravagista! E isso tem nome e sobrenome: RACISMO RELIGIOSO!
E que o Abaeté, que curiosamente significa “homem verdadeiro” seja verdadeiramente respeitado pelos homens e que o direito ao Sagrado das irmãs e irmãos de religiões de matrizes africanas não seja vilipendiado pelo “poder branco evangélico”. Repito: os evangélicos nunca foram expulsos de lá, realizam seus cultos sem problemas, mais um sinal de que candomblecistas não usam de intolerância num lugar que sempre lhes foi Sagrado. Mas que essa fé, ancestral e fundante de nossa brasilidade seja respeitada e não saqueada pela má-fé daqueles que se arvoram donos da Divindade e, por consequência, de todos os locais Sagrados.
Que no Abaeté, areias e estrelas continuem encantando poetas e energizadas pela força de seus Orixás e Ancestrais. Deus proverá respeito, tolerância e amor! Aliás, ele sempre provê... só não pratica quem não quer...
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.