PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Lula às voltas com o capital financeiro

O que está por trás do barulho todo? Em uma frase: o capital financeiro quer povoar o futuro governo Lula de funcionários do status quo. Como Lula não entregou, ou ainda não entregou os pontos, o barulho continua

Lula.Créditos: Ricardo Stuckert
Escrito en OPINIÃO el

Artigo escrito em 1 de dezembro

Só o Lula mesmo! Imagine, leitor, a eleição de 2022 sem ele na disputa. Estaríamos neste momento diante de mais quatro anos de desastre e desagregação. Agora, leitor, imagine o dificílimo quadro pós-eleitoral sem Lula. Digo isso sem nenhuma satisfação ou idolatria. A nossa dependência em relação a um só homem é altamente problemática. Muito pior do que a dependência da seleção brasileira jamais foi em relação a Neymar.

Nietzsche dizia que a capacidade de suportar sofrimento é o que determina a hierarquia. Lula tem essa capacidade em altíssimo grau. E é com ela que estamos contando (de novo!) para tentar superar os imensos desafios pós-eleição. Imensos porque a sociedade brasileira está profundamente degenerada. Não apenas os bolsonaristas estacionados em frentes aos quartéis ou bloqueando rodovias, mas grande parte das camadas dirigentes, do Congresso, do empresariado e da mídia. Há muitas exceções a isso, felizmente, mas o quadro geral é desolador.

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis a ele e ao que ele representa: a extrema direita (rebelada contra o resultado das eleições com apoio de parte das Forças Armadas), a direita fisiológica que domina o Congresso (o chamado Centrão) e, last but not least, o capital financeiro. Este último, referido impropriamente como “mercado”, tem estreita ligação com a finança internacional e domina amplamente a mídia tradicional, que em geral vocaliza de modo automático e monótono seus interesses e preconceitos. A direita fisiológica e o capital financeiro são mais hipócritas e disfarçam sua hostilidade, mas ela é real e não deve ser subestimada. 

Evidentemente, os três blocos não são estanques. Colaboram com frequência, e não raro ativamente. Aliaram-se, por exemplo, para patrocinar a devastação bolsonarista. Agora tentam inviabilizar ou capturar o novo governo. Estou exagerando? Não creio.

O bloco mais perigoso talvez seja aquele formado pelo capital financeiro e a mídia tradicional. É dele que gostaria de falar um pouco hoje. 

Para além do óbvio – o nexo dinheiro/poder/influência – o perigo reside no fato de que boa parte desse bloco embarcou na famosa Arca de Noé do Lula. Em outras palavras, aderiu à frente ampla formada para derrotar o bolsonarismo nas eleições. Agora querem cobrar caro pela sua participação. Era previsível.

Imediatamente depois das eleições, sem dar tempo para a poeira baixar, promoveu-se uma campanha midiática para intimidar e enquadrar o presidente eleito. E a campanha continua. Uma verdadeira inquisição financeira, como notou Luiz Gonzaga Belluzzo. 

O mote é a “responsabilidade fiscal” e as supostas indicações que Lula teria dado, depois da vitória eleitoral, de não entender a importância desse princípio. Ora, ora, nada que Lula tenha declarado depois das eleições diverge do que ele disse, repetidamente, durante a campanha. Ou ele não avisou, várias vezes, que não conviveria com o teto constitucional de gastos? E que o enfrentamento da crise social seria a prioridade número 1 do seu governo? 

O debate econômico quase desapareceu da mídia tradicional. Há muito tempo. O que se tem, na maior parte do tempo, é a repetição monocórdia de uma mesma mensagem, dos mesmos slogans, transmitidos por economistas e jornalistas a serviço da turma da bufunfa. Não são muito frequentes os lampejos de inteligência ou criatividade. Como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos. 

O que está por trás do barulho todo? Em uma frase: o capital financeiro quer povoar o futuro governo Lula de funcionários do status quo. Como Lula não entregou, ou ainda não entregou os pontos, o barulho continua. Temos de tudo: entrevistas, editoriais, noticiário editorializado, opiniões, artigos e, de quebra, cartas abertas ao presidente eleito. O Banco Central já está sob comando do capital financeiro, graças à lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro. Não é o suficiente, porém, para eles. Querem também o comando do Ministério da Fazenda e tentam induzir o presidente Lula a colocar lá alguém palatável, que não desafie seus interesses e privilégios. Alguém que dance conforme a música.

No entorno de Lula, no campo da esquerda ou da centro-esquerda, há muita gente de alto nível e espírito público. Por outro lado, há também gente ansiosa para agradar e se mostrar “responsável”, buscando viabilizar projetos individuais de poder. Instala-se assim uma race to the bottom, um nivelamento por baixo, com algumas pessoas disputando para ver quem se mostra mais confiável aos olhos do capital financeiro e da mídia corporativa.

É a síndrome de Palocci. O que o capital financeiro busca, na verdade, é um novo Palocci. E seus representantes manifestam, abertamente, o desejo de que o Lula 3 seja parecido com o Lula 1, isto é, aquele Lula dos anos iniciais de governo, mais dócil, enquadrado, com Palocci na Fazenda e Meirelles no Banco Central. Meirelles era um típico executivo do mercado financeiro, mais ou menos equivalente a Roberto Campos Neto, o atual presidente do Banco Central. Palocci era um político do PT que se viabilizou dando todas as garantias de que nada faria contra os poderes estabelecidos. E copiou descaradamente a política que vinha sendo seguida por seu antecessor, Pedro Malan, o ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso – sem nunca pagar os devidos direitos autorais. Colheu todos os elogios da Faria Lima e da mídia. Deslumbrou-se. E terminou melancolicamente, na traição mais abjeta.  

 Lula prometeu que voltaria “para fazer mais e melhor”. Não conseguirá se perder o controle da área macroeconômica do governo. 

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”. 

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. 

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