Nesses tempos, às vésperas de grandes projeções que fazemos quanto ao futuro do Brasil e nosso próprio, sei que alguns amigos, que tenho o prazer de importá-los para dentro da minha existência há alguns bons anos, esperam uma prosa minha, como muitas vezes fizemos ao vivo, debatendo sobre a política e a vida por horas e horas.
Neste ano, diferentemente do que sempre faço, decidi primeiramente ouvir muitos deles. Fazer o exercício de sair da minha bolha para conhecer a bolha do vizinho - e do vizinho do vizinho. E expandir a minha própria visão sobre o momento histórico em que estamos vivendo. O objetivo é sair do espaço/tempo que aprisiona nosso pensar para olhar de forma mais ampliada, histórica e sistemicamente.
Em 2018, escrevi no dia 24 de outubro de 2018, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, um artigo intitulado "Bolsonaro, o falo fumegante e o abraço de um pai", em que me proponho a realizar uma análise comportamental, à luz de meus estudos sobre Psicologia, do presidente que seria eleito dias depois.
Acredito que para que possamos compreender o comportamento de uma pessoa é preciso mergulhar em sua história de vida, em sua ancestralidade e, especialmente na relação com o chamado locus nascendi, a família, o primeiro lugar onde aprendemos a fazer política, no sentido etimológico da palavra: de viver e se relacionar na cidade (polis), de ser cidadão.
Nessa tríade, que forma a relação entre pai, mãe e criança, é onde se molda nossa identidade, nossa personalidade, a partir da herança de valores, crenças e comportamentos - seja repetindo ou repelindo isso em nós.
A mãe, que carrega o bebê no ventre, é responsável principalmente pela formação de nosso sentir, do nosso relacionamento com nossas próprias sensações e emoções. O pai, que nos recebe à luz, é responsável especialmente pela nossa relação com o mundo. De como vemos o outro: como amigo ou inimigo; como oportunidade (de aprendizado, evolução) ou ameaça; com amor ou com ódio.
Lula, mais até do que Bolsonaro, teve uma relação extremamente conturbada com o pai, Aristides Inácio da Silva, um homem violento, forjado na estrutura social patriarcal, machista e misógina centenária em que estamos inseridos. Assim como foi Percy Geraldo Bolsonaro, pai de Jair Bolsonaro.
Em 1945, Aristides largou em Garanhuns, no Agreste pernambucano, Eurídice Ferreira de Melo, a Dona Lindu, com sete filhos - Lula ainda na barriga. Veio para Santos com Dona Mocinha, prima de Lindu, também carregando um filho no ventre.
Lula teve o primeiro contato com o pai aos 5 anos, quando o então estivador do porto de Santos, no litoral paulista, voltara a Pernambuco. Pelos primeiros 7 anos - onde se forma a maioria da nossa identidade -, Lula ficou sob a proteção exclusiva de Dona Lindu, que como milhões de mulheres brasileiras criam os filhos sem o mínimo auxílio de quem o ajudou a concebê-los - mulheres que foram o principal público impactado pelo Bolsa-Família formatado mais de 50 anos depois.
Em 1952, Dona Lindu vendeu as terras secas da família para embarcar com seis dos sete filhos em um pau-de-arara rumo a Santos - um deles, Jaime, já estava para os lados de cá. Era justo que o pai ajudasse a criar os filhos, mesmo já tendo outros pares (chegaria a uma dezena) com a prima.
Aos 7 anos, Lula e os irmãos foram cuidados pela mãe durante treze dias e treze noites de viagem, quando se alimentaram apenas de rapadura e farinha.
Anos depois, convivendo com sessões de torturas (como o próprio Lula define em sua biografia escrita por Fernando Rodrigues) que o pai submetia os irmãos, o menino Lula viria a viver um momento que marcaria para sempre sua vida.
Apesar de violento com os irmãos, Aristides nunca havia batido em Lula. Um dia após desobedecer o pai, o viu partindo para cima do irmão, Ziza, com um pedaço de mangueira de borracha. A surra só terminou quando o menino urinou nas calças e caiu no chão de dor.
Aristides se preparou, então, para castigar Lula, quando Dona Lindu chegou e abraçou o filho. A lambada pegou no rosto da ex-esposa - que morava próximo ao ex-marido pelo ajudo no custeio dos gasto com a prole.
Foi a primeira e última vez que Aristides bateu em dona Lindu, que se mudou no outro dia com os seis dos sete filhos para outra casa, um pouco mais distante.
Anos depois, em 1955, ela deixou a Baixada Santista para buscar melhores oportunidades aos filhos no ABC Paulista.
Aos 10 anos, Lula já havia convivido com o abandono paterno, a miséria, o preconceito e a agressividade machista e misógina. Feridas históricas e ainda mais latentes hoje em nosso país.
Entretanto, o menino Lula também, conviveu com a coragem, a sensibilidade, a resiliência, o amor e o cuidar materno de Dona Lindu. O abraço forte e feminino que o protegeu da surra que levaria do pai e a atitude da mãe diante da tortura promovida pelo homem que estava à sua frente mostrou a Lula que mesmo diante do ódio e da violência há escolhas. E Dona Lindu escolheu levar adiante somente o amor pelos filhos e as poucas roupas que traziam.
Um recorte no espaço e no tempo e, anos depois, Lula seria eleito presidente promovendo a maior ascensão social que o Brasil já viveu - focada sobretudo em programas sociais focados na emancipação da mulher. Levou diaristas aos aeroportos e à Disney e filhos de pessoas pobres, que como ele tiveram mínimas oportunidades de estudar, à se formarem como médicos, engenheiros.
Por buscar a conciliação, teve a vida defasada e foi levado à prisão por 580 dias através de uma sentença sem provas proferida por um político que usou a magistratura para se autopromover - a História se encarrega de contar o resto.
Antes de ser levado à prisão - que depois se mostrou injusta e parte de uma trama para levar o fascismo neoliberal ao poder -, Lula contou um pouco da sua história de vida, lembrou do que aprendeu com a mãe, dona Lindu, e esperançou:
"Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais poderão deter a chegada da primavera. E a nossa luta é em busca da primavera".
Aos 76 anos, livre, Lula carrega com ele o abraço de Dona Lindu. E quando diz - a sua mais nova "mania" - que não quer governar e, sim, "cuidar" das pessoas pobres do Brasil, Lula fala não só para milhares de brasileiros que confiarão a ele neste domingo, 2 de outubro, seu voto e seu futuro como nação e como indivíduo.
Quando Lula fala em cuidar, ele fala principalmente para o menino Luis Inácio que dentro de um abraço amorosa da mãe se protegeu não só da surra do pai, mas também da fome, do descaso infantil, de todos os tipos de violência de uma sociedade patriarcal, do preconceito daqueles que pensam de forma "ariana" sobre pessoas, raças e gêneros e da falta de oportunidades para que não goza de privilégios ("lei privada, para poucos").
Quando Lula fala de amor ao pobre, ao faminto, fala com a propriedade de quem aprendeu a sentir com a pessoa que mais ama, desde a gestação, o que é a fome, a pobreza, as consequências de um país desigual - e, por muita vezes, desumano -, a violência de gênero, a misoginia.
Dona Lindu conviveu com tudo isso e escolheu buscar caminhos pelo amor, dentro de seu abraço. Sempre!