Nas publicações em quadrinhos da Marvel, Elizabeth (ou Betsy) Braddock tem um histórico complicado. A personagem, criada em 1976, é filha de aristocratas ingleses, e seu irmão gêmeo, Brian, foi ordenado Capitão Britânia por Merlim.
Betsy, uma mutante telepata, acompanha as aventuras do irmão até se desvincular dele no fim dos anos 1980 em favor dos X-Men, sob o codinome de Psylocke. Ela compôs aquela que é até hoje a equipe mais interessante da franquia, apelidada de equipe do outback australiano, porque a maior parte de suas aventuras foram ambientadas nessa paisagem (X-Men: Inferno Vol. 1 a 6, lançados no Brasil pela editora Panini, colecionam esse período).
Um pouco depois disso, em 1990, Betsy Braddock troca de corpo com Kwannon, uma personagem japonesa. No corpo de Betsy, Kwannon morre algumas revistas depois. E, assim, por décadas, Psylocke foi associada a esta personagem: uma mulher branca dentro do corpo de uma mulher amarela. Foi desse modo que Betsy Braddock se tornou uma das personagens mais famosas da franquia, em uma narrativa marcada por uma insensível fascinação orientalista.
Há poucos anos, a troca de corpos, enfim, foi desfeita. Ainda que a solução política final tenha incluído trazer Kwannon de volta para a trama e fazer dela uma personagem completa (ficando ela mesma, inclusive, com o nome de Psylocke), essas duas personagens seguem à sombra de muitos anos de publicações racistas, e era preciso que as suas novas histórias enfrentassem isso.
Excalibur tem uma história de publicação bastante diferente da de Betsy, mas a personagem e essa equipe, fundada em Excalibur #1, em 1988, sempre estiveram intrinsecamente relacionadas. No farol dos Braddock, um grupo de mutantes se alia ao Capitão Britânia para defender o Reino Unido e o “Extramundo”, domínio onde habitam personagens das lendas inglesas, como Rei Arthur e Morgana, a feiticeira.
Diretamente derivada das histórias do Capitão Britânia, de Alan Moore e Alan Davis, a revista propõe uma atualização engenhosa das mitologias bretanhas. Em um relançamento de 2019, pela escritora Tini Howard e o artista Marcus To, eventos místicos fazem com que Betsy receba do irmão o amuleto da justiça, fazendo dela a nova Capitã Britânia e líder de uma nova e recém-formada equipe Excalibur.
O que mais me interessa nessa nova abordagem para a equipe e a personagem é a maneira como a trama da revista é convocada para responder às demandas políticas em torno do histórico de publicações de Betsy.
Alan Moore, Alan Davis, Chris Claremont e agora Tini Howard foram todos autores que lidaram muito satiricamente com a ideia de que no seio do império britânico encontra-se o caminho para o Extramundo.
Existe um aspecto supremacista dessa ideia que não escapa a nenhum desses autores. A convocação de Betsy Braddock como essa figura protetora do império é dotada de ironia. Uma aristocrata britânica que passou décadas no corpo de uma mulher japonesa recebe essa distinta honraria de Estado, esse título de cavaleirismo. Além disso, uma mulher que é também uma mutante.
Podemos medir o quão bem um autor lida com o universo dos X-Men, por como esse autor trabalha a tão central metáfora de minoria que atravessa essas publicações. Para isso, é necessário que se vá além da reivindicação dos mutantes como minoria (a constatação fácil de que eles são perseguidos, isolados, ameaçados etc.), para também trazer para dentro da narrativa a maneira como a marginalização política de minorias do mundo real ocorrem, então reconhecendo práticas como políticas de Estado discriminatórias e o exercício violento do poder econômico sobre esses grupos marginalizados (e preferencialmente também incluindo em papel central nas narrativas personagens de minorias nada metafóricas).
Tini Howard alcança isso. Sua Excalibur se confronta com as expectativas de uma Inglaterra nacionalista, um nacionalismo que se reflete no espelho distorcido do país, que é o Extramundo. Para a prioridade absoluta de defesa desse Império acima de todos os outros, uma mutante – e uma mutante que foi por décadas forçada a abdicar da sua existência em um “corpo britânico” – é uma ameaça aos delírios de superioridade nacional.
Quando, em um dado momento da trama, o véu entre a Inglaterra e o Extramundo é rompido, e monstros míticos que povoam a literatura britânica invadem o país da rainha, percebo uma literal invasão da imagem absurda, satírica, do espelho distorcido, que reúne séculos do imaginário ficcional do país, para dentro daquele mundo “real” de que a ficção, em uma concepção enganosa, deveria ser eternamente apenas um reflexo mantido à distância. Essa ideia é o cerne da saga A Liga Extraordinária, de Alan Moore, e retomada, com excelência, por Howard e To. Não se afasta, mas recria, a concepção original de Moore, de que os heróis imaginados, as feiticeiras, os dragões, os tolos, as torres encantadas, são decorrências realizadas de expectativas e projetos políticos diversos que agem na prática do mundo real, num sentido em que a imaginação política não se distingue da imaginação literária.
Diferentemente de A Liga Extraordinária, no entanto, em que esse trânsito do ficcional na Inglaterra real culmina numa implosão completa das bases que sustentam o país, a nova Excalibur encerra o seu primeiro arco com uma conciliação e restabelecimento das fronteiras falsas que separam a Inglaterra do Extramundo.
Eu não veria isso, porém, como um gesto de comprometimento político dos autores, e mais como parte de um processo de desenvolvimento dessa nova Capitã Britânia. É possível para Betsy Braddock realizar essa função? E o que o cumprimento de sua missão nacionalista significaria para a personagem? São essas as perguntas propostas por Howard. A Capitã Britânia ainda sustenta o seu título e segue cumprindo sua ambígua missão nos novos números de Excalibur? Pela Inglaterra e pela rainha? Veremos.
A nova Excalibur está reunida no Brasil nos volumes de X-Men da Panini (a partir do vol. 5), e aqui discuto especificamente os eventos de Excalibur #1 a #6, contidos nas publicações X-Men vol. 5, 7, 8, 9, 10 e 11.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.