Escrevi um texto no começo de 2020, falando da epidemia de Covid na China e do que poderia acontecer. Da mesma forma que esperava o pior a partir de outubro de 2018, após a vitória de Jair Bolsonaro, também esperava o pior do Covid.
Mas até mesmo as pessoas mais realistas, como eu, tiveram suas expectativas superadas. Tanto Bolsonaro quanto a pandemia de Covid 19 foram muito mais devastadores do que os piores pesadelos. Essa realidade é demasiadamente distópica até para os mais pessimistas. Viver a pandemia no Brasil de Bolsonaro é aterrorizante. Está na nossa cara o passado recente, as guerras mundiais, os conflitos no Oriente Médio, no Leste Europeu, a ascensão do nazismo, o genocídio que veio a seguir, mesmo assim, a história segue se repetindo, dando palco pra fascista. Sabemos das pandemias do mundo: gripe espanhola, varíola, Aids... é sempre possível prever o futuro, analisando o passado.
Não fôssemos nós, brasileiros, acostumados com esquema de vacinação em massa, exemplo mundial de erradicação de doenças pela imunização, teríamos um cenário ainda mais desolador. Estamos no precipício e só não caímos, apesar de Jair, porque ainda seguramos um na mão do outro. Também puxamos alguns incautos, desinformados ou negacionistas dos braços da morte. Por mais que eu não queira viver num mundo com pessoas que não querem se vacinar, que acreditam que os golpes de Estado são necessários para livrar o Brasil do comunismo, que a Terra é plana ou que deus está acima de todos, essas pessoas existem. E é preciso que elas se vacinem para que todas as outras continuem existindo.
Assim como eu, acho que muita gente se sente como no filme O Feitiço do Tempo, em que o personagem de Bill Murray acorda todo dia no mesmo dia. Mas ao contrário do filme, em que ele sabe tudo o que vai acontecer e pode fazer diferente, nós não sabemos nada do que vai acontecer e temos de fazer tudo igual. E essa ansiedade deixa a todos muito doentes. Nunca foi tão necessário viver um dia de cada vez, fazendo o que se tem que fazer: vacinar, manter distanciamento, usar máscara, higienizar as mãos. Como um mantra.
O cão nosso de cada dia
Em abril do ano passado dei lar temporário para um cachorro, que chegou com fratura por atropelamento, doença do carrapato e tinha sofrido maus-tratos. No começo não andava, passou a mancar, depois corria e pulava. Tão alegre e amoroso, que facilmente invadiu meu coração, que já era ocupado, mas tem sempre espaço pra mais um. Com todas as dificuldades e responsabilidade que é decidir ter um animal, fiquei com Bethinho (veio como Bethoveen). Ele é um Shitzu bonzinho, agora com cerca de dois anos e alguns meses. Me faz companhia na solidão da escrita, me faz caminhar nos dias nublados, me faz refletir sobre o amor construído na confiança.
Passear com o Bethinho pelos belos jardins da orla da praia de Santos é sinônimo de conhecer pessoas e cães. No começo de dezembro passeávamos pelo calçadão, quando vi uma mulher muito bonita, de cabelos totalmente brancos, olhos muito azuis, pele muito enrugada e com manchas do tempo, sentada no banco embaixo da árvore, olhando o mar, com sua cachorrinha no colo. Bethinho correu para socializar. Conversamos. Logo passou uma jovem sorridente e sua cachorrinha, que parou para brincar com o Betinho.
“Opa, deixa eu colocar minha máscara” - disse a moça ao se aproximar.
“Tomei minha terceira dose hoje, estou com o braço dolorido. Perdi meu irmão de Covid, porque ainda não tinha vacina” – suspirou a senhora dos olhos azuis.
“Perdi meu tio e meu primo...” – emendou a moça um tanto triste.
“Perdi tio, quatro primos e grandes amigos” – completei, com vontade de chorar. E assim seguimos falando de Covid e nossas perdas. Além da alegria de termos nossos amigos cães. A senhora morava sozinha com a cachorra dela, que se comunicava com a pata. Sim, eu estava lá e pude constatar esse fato.
Esse é um diálogo entre três pessoas aleatórias, de gerações diferentes, que talvez nunca mais se vejam ou se reconheçam. Três pessoas desconhecidas falando de grandes perdas pelo mesmo motivo. O luto está em todos. E nosso luto é tão grande que sentimos a necessidade de dividi-lo, já que tantas pessoas passam pelo mesmo, é uma terapia em massa.
Ontem, no passeio matinal da orla marítima, Bethinho me puxou na direção de uma cachorrinha linda, bem menor que ele. Ela se escondeu nas pernas da dona, arregalou os olhos e até tremeu. Logo foi para o colo e sua dona disse. “Ela está aprendendo a socializar agora, é uma cachorrinha da pandemia”.
É, meus caros, não são apenas as relações humanas que se transformaram depois da Covid e de Jair Bolsonaro. E vamos ter a chance de nos transformar de novo este ano, pelo poder do voto.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.