Mesmo nos atuais tempos bicudos, o Brasil deu um passo para a democracia nos últimos dias com a revogação da Lei de Segurança Nacional pelo Congresso. O passo só não foi maior porque o presidente Jair Bolsonaro vetou partes do projeto de Lei de Defesa do Estado Democrático, aprovado na Câmara e no Senado para substituí-la.
A Lei de Segurança era um dos resquícios que vigoravam como herança da ditadura implantada em 1964. Como se sabe, ela torturou e assassinou adversários, impediu o livre debate, suspendeu eleições diretas, cassou mandatos eletivos e direitos políticos e instituiu a censura à imprensa. Mas, diferentemente do que ocorreu em outros países da América Latina, no Brasil a ditadura não foi derrotada.
Num processo que combinou o acúmulo de forças por parte da oposição e uma liberalização controlada pela própria ditadura, esta última foi saindo de cena, pouco a pouco, num processo negociado. A redemocratização foi fruto de uma distensão lenta, gradual e segura, para usar uma expressão dos próprios militares.
Problemas enfrentados depois na construção de uma democracia sólida têm origem na forma como acabou a ditadura.
Vários esqueletos ficaram no armário. Não houve a abertura dos arquivos da repressão política e a punição dos torturadores e assassinos do regime militar. A própria Lei de Segurança Nacional, apesar de abrandada em alguns pontos, permaneceu vigente. Chegou até a ser usada por Jair Bolsonaro contra opositores. Só agora foi derrubada.
Esse processo teve consequências. A mais nociva foi que não se criou na sociedade um conjunto de anticorpos contra atentados aos direitos humanos e à democracia. E, que ninguém duvide, isso tornou possível a eleição de um personagem que defendia a tortura e o assassinato de adversários políticos.
A democracia é um processo que deve ser aperfeiçoado a cada momento, ao longo dos tempos. Em certas circunstâncias históricas, inclusive, esse processo de aperfeiçoamento pode viver retrocessos. Mas é preciso que se tenha presente a direção em que se quer avançar para que, apesar de eventuais percalços, se caminhe para o aperfeiçoamento do Estado Democrático. Para isso é fundamental a clareza dos objetivos que se quer alcançar.
Já dizia Sêneca, um pensador romano contemporâneo de Cristo: de nada serve a direção do vento para um navegante que não sabe onde quer ir. Esta verdade permanece atual.
Pois bem, agora, mesmo conseguindo-se jogar no lixo a Lei de Segurança Nacional, Bolsonaro desfigurou parcialmente o que foi aprovado no seu lugar - a Lei de Defesa do Estado Democrático - com os vetos que determinou.
Eles foram cinco:
O primeiro foi o que previa punição para quem difundisse as chamadas “fake News” em grande escala. A razão pela qual Bolsonaro vetou esse artigo é segredo de Polichinelo: ele e seus apoiadores são os maiores difusores de mentiras nas redes sociais e as utilizam amplamente nas eleições.
O segundo veto foi à punição de quem impedisse o “livre e pacífico exercício de manifestação”. A justificativa aqui é risível. Segundo o presidente, seria difícil caracterizar o que é “manifestação pacífica”.
O terceiro é ao dispositivo que aumentava em um terço a pena de crimes contra o Estado Democrático de Direito, se eles fossem cometidos por militares.
O quarto veto é o que agravava a punição se o crime fosse perpetrado com o uso da violência ou de grave ameaça, com uso de arma de fogo ou, ainda, se fosse cometido por funcionário público.
Por fim, o quinto veto é quanto à permissão de que partidos com representação no Congresso movessem ações sobre crimes contra as instituições democráticas no processo eleitoral, nos casos em que o Ministério Público não o fizesse.
Como se vê, os vetos de Bolsonaro são absurdos.
Cabe, agora, uma tarefa aos democratas: derrubá-los.
Isso pode ser feito pelo Congresso, por maioria absoluta dos deputados e senadores (ou seja, por votos de 257 deputados e de 41 senadores, computados separadamente), numa sessão conjunta da Câmara e do Senado. Caso não os vetos não sejam apreciados em 30 dias, a votação sobre eles passa a trancar a pauta das sessões do Congresso.
Como o projeto original da Lei de Defesa do Estado Democrático foi aprovado tanto na Câmara, como no Senado, a derrubada dos vetos é perfeitamente possível.
Mãos à obra, pois.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.