Conforme apresentado na primeira parte deste artigo, em época de crise econômica generalizada e consequente turbulência social – caso do período entreguerras (anos 1920 e 1930) e da época atual –, costumam se fortalecer os discursos irracionais, dentre os quais o fascismo: este regime que é o ápice da ignorância e terror moderno.
Para Caio Prado Júnior, o fascismo, em suas variadas formas e intensidades de estupidez, é uma via alternativa utilizada pelos capitalistas em tempos de crise, quando a hegemonia de poder das classes dominantes (senhores do capital e seus asseclas, a chamada “direita”) se vê ameaçada diante da insatisfação popular.
Trata-se de uma forma ainda menos democrática e mais violenta com que os capitalistas (neoliberais, liberais conservadores, etc) enfrentam situações adversas, nas quais já não conseguem controlar a nação e o povo através das corriqueiras manipulações midiáticas e eleitorais, a que denominam “democracia liberal”.
Este é um tema que, infelizmente, como vemos dia a dia nos jornais do século XXI, mantém sua insólita atualidade.
“Diários Políticos” – notas sobre o fascismo na evolução histórica do Brasil
Para melhor nos situarmos no ponto de vista de Caio Prado sobre o fascismo (experiência que ele sofreu na pele, vivendo no cárcere e no exílio), e para compreendermos a historicidade de sua crítica e de seus embates no campo intelectual, notemos inicialmente o que destaca o historiador Boris Fausto (em História do Brasil, 1995): no final dos anos 1920, a crise da economia mundial (que estoura em 1929) veio a reforçar o “desprestígio” da democracia liberal – ou seja, deste regime que se identifica, no plano econômico, ao capitalismo.
Nesse contexto, que abre flancos ao autoritarismo, ocorre que, logo após o intento de golpe paulista de 1932 – chamado até hoje pelo pomposo nome oligárquico (e paulistocêntrico) de “revolução constitucionalista de 1932” –, surge em São Paulo a Ação Integralista Brasileira, movimento de inspiração fascista.
O integralismo foi uma doutrina conservadora ultranacionalista, voltada sobretudo ao enfrentamento dos comunistas e das mobilizações operárias. Em 1935, após violentos choques entre estes extremistas de direita e os militantes das esquerdas (socialistas), o governo Vargas promulga sua Lei de Segurança Nacional, endurecendo a legislação sobre ações contra a estabilidade do Estado (ou “do seu governo”), e afetando garantias civis, tais como as greves e o direito à manifestação política (tachada como “incitação” ao “ódio de classes”).
Ao fim desse ano, o levante comunista (1935) é derrotado, o que acirraria a repressão do governo varguista contra os interesses dos trabalhadores – por exemplo, dá-se a criação da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo.
A partir de então, a guinada à direita de Vargas se aprofundaria. Em 1937, um falso boletim escrito por integralistas para incriminar os comunistas– em que se afirmava a iminência de uma revolta popular – foi o pretexto do governo para interromper o processo eleitoral e executar seu golpe de Estado. Veja-se que a tática das “fake news” sobre o “perigo comunista” não são sequer criativas.
No novo cenário político, os integralistas – que Getúlio apoiara em seu início – solidarizam-se com o golpe, esperando obterem cadeira ministerial; no entanto, foram depois desiludidos, pois Vargas centralizaria os poderes, proibindo a existência de qualquer partido (apesar de, na prática, ter tolerado que os integralistas seguissem se organizando discretamente, como forma de fustigar a militância socialista).
Guinada fascista de Getúlio Vargas
Vargas, a partir de então, se volta definitivamente à direita, em um movimento que Caio Prado Jr. classifica como a “fascistização” do governo brasileiro. Apesar disto, vale frisar que o pensador marxista considera que anteriormente, na chamada Revolução de 1930, Vargas havia tido posição progressista, ao enfrentar as oligarquias regionais.
A respeito deste momento histórico, é interessante observar a análise que Boris Fausto faria sobre o tema, décadas mais tarde, e que converge com a de Caio Prado: o Estado Novo representou uma aliança entre a burocracia civil e militar, e a burguesia industrial.
O fascismo como capitalismo não ortodoxo
Caio Prado, no início dos anos 1930, em seus primeiros estudos sobre o fascismo (manuscrito sobre artigo de C. Hayder, “O Estado corporativo italiano”, 1931, do Arquivo do IEB-USP), anota que o “sindicalismo fascista” se distingue de outras correntes, especialmente:
– pela “aceitação da classe capitalista como socialmente produtiva”;
– pela “ilegalidade da luta social”;
– pelo “princípio da colaboração de classes”.
Tal sistema se caracteriza, sintetiza ele, por uma “artificialidade completa”, apoiando-se “integralmente na ditadura”, e visando a manutenção de “salários muito baixos” e a “passividade das massas”.
Sobre a conjuntura europeia de ascensão fascista, o autor aponta que a situação italiana é “deplorável”: “grande manada de desocupados e meio-ocupados”.
Já em sua resenha do ensaio “Comunismo e fascismo: caráter econômico distintivo” (de Keneth Burke, revista New Masses, 1934), Caio pondera, com relação à política mundial, que “o capitalismo ortodoxo entrou em crise”, pois que sua “força básica” (que é sua capacidade de “expansão”) já “não pode mais se desenvolver”, dada a saturação do mercado. Em seguida, avalia a necessidade capitalista de integrar “política” e “produção”, o que consiste em uma espécie de “economia dirigida”, fundada nos “negócios” – ao contrário do comunismo, afirma, que procura tal “integração” por meio da “eliminação do negócio”.
O “ideal do negócio”, com sua esperança na volta dos investimentos, necessita do expansionismo, o que se inicia pelo “imperialismo econômico”, espécie de “invasão comercial”, e vai “tendendo para uma invasão militar”. Segue-se disto que não há “lógica” na tentativa fascista de “erigir uma economia estável sobre as contradições das empresas de negócios”.
Enfim, resume Caio: a diferença entre fascismo e comunismo é que aquele por meio do “negócio” e este pela “política”: aquele “subjuga” e este “prioriza” o trabalhador.
Um ano depois, em análise de artigo de G. Haschek (de 1935), saído na revista Annales, Caio Prado ressalta que o fascismo é um “movimento de massas”, que visa superar os “antagonismos profundos” da sociedade moderna mediante o “entusiasmo nacionalista”, visando conformar “uma nova elite”, um “novo quadro de dirigentes”.
Acerca do Estado Novo de Vargas
É com base em tais parâmetros conceituais que Caio Prado elabora sua interpretação política do Estado Novo, de Vargas – no que acaba por divergir da linha do líder comunista Luís Carlos Prestes, quem apoiaria Getúlio em prol da estratégia pecebista “nacional-libertadora”, em oposição à “ameaça fascista”, que supunha externa (ameaça que, segundo Caio, pelo contrário, vinha do próprio Vargas).
Por este período, em meados dos anos 1940, agravam-se as divergências de Caio com Prestes, e também com os rumos do PCB como um todo – caminhos que ele vê como dogmáticos e centrados no modelo europeu (conforme seus “Diários Políticos”) [*].
Na próxima parte deste artigo, detenhamo-nos então nas reflexões de Caio Prado sobre a época da instauração do Estado Novo (em que trata tanto da política de Getúlio Vargas, como do movimento integralista, neste período em que considera que o Brasil vai se “fascistizando”). Para tanto, analisemos o ensaio caiopradiano pouco conhecido e ainda tão atual: “1937”.
[*] – Sobre o tema, veja-se o capítulo 1 de “Marx na América: a práxis de Caio Prado e Mariátegui” (Alameda, 2018). Chama-se “Diários Políticos” ao conjunto de cadernos manuscritos, em grande parte inéditos (pertencentes ao Arquivo do IEB-USP), em que Caio sistematicamente escreveu, durante anos, suas reflexões sociopolíticas.
[**] – Este artigo tem o propósito de popularizar o debate sobre temas marxistas; trata-se de versão reduzida do ensaio teórico “No sentido do fascismo”, capítulo do livro “Brasil e América Latina na Segunda Guerra Mundial” (Editora CRV, 2017).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.