Inúmeros filmes de Hitchcock são considerados alguns dos maiores clássicos da história da sétima arte. “Pacto Sinistro” (1951) decerto é um deles, sim. Talvez um pouco insuspeito, por não conter um dos maiores atores ou atrizes da história de Hollywood (o que pode ser debatível, já que Farley Granger era muito maior do que qualquer fama de manchetes de jornais)... Ou mesmo por não se tratar de um dos títulos mais popularizados, com muita memorabilia de fãs, como camisetas de “Vertigo” (1958) e “Psicose” (1960), e canecas de Pássaros” (1963)... Mas as propriedades inerentes a ele de fato registram alguns marcadores que serão utilizados em outros filmes do próprio cineasta, bem como ditarão tendência para o cinema em geral e que devem ser revisitadas neste aniversário de 70 anos para entendermos sua atemporalidade.
“Strangers on a Train”, no título original, era a adaptação do primeiro romance homônimo de Patricia Highsmith, cujo filme foi realizado apenas com um ano de diferença do lançamento do livro, tamanha a visão de Hitchcock. A trama é narrada em ritmo de thriller psicológico, acompanhando pontos de vista diferentes de dois estranhos que se esbarram num trem e conversam sobre desafetos em sua vida, a brincar sobre a possibilidade de um assassinar o desafeto do outro, para terem álibi em relação a si mesmos. Só que um dos dois não concorda com o plano e não segue em frente com o previsto, criando tensões entre os dois que vão se acentuando na projeção.
Muitos filmes de assassinatos já existiam em Hollywood, até porque a década de 50 foi a era de ouro do gênero noir, uma linguagem derivada dos filmes policiais, e cujas personagens eram dúbias e amorais. Inclusive, o próprio Hitchcock se utilizava de várias referências estéticas que estavam muito em voga, mas o fazia com tal personalidade que seus filmes transcendiam o noir e ofereciam algo ímpar para além dos marcadores principais.
E “Pacto Sinistro” marcou época por inúmeras razões, uma delas decerto sendo a amoralidade de suas personagens, mas não ficando adstrito a isso. Especialmente por ambos protagonistas terem motivações extremamente questionáveis. De fato, isso marcou época, e talvez por isso mesmo esta obra seja tão lembrada de forma destacada perante outras.
Muitas vezes as personagens do mestre do suspense eram realmente inocentes, pegas num engano, o qual seria dirimido ao longo da trama, ou seja, haveria uma inocência a ser desvelada. Se não fosse o protagonista masculino acusado injustamente, seria a protagonista feminina. Todavia, em “Pacto Sinistro”, a motivação de ambos é originalmente torpe. Mesmo que um deles não tenha realmente concordado em assassinar o parente do outro, sendo falha a troca de álibis pela raiz, ainda assim a tentação passou pela personagem, pois ela de fato desejou a morte de alguém.
E sequer temos necessariamente personagens femininas centrais, e sim mais coadjuvantes, tanto em tempo de tela quanto em centralidade de trama. Até mesmo a outra atriz feminina de peso, na pele de Ruth Roman, como a noiva com quem Granger pretenderia casar quando sua esposa morresse, é filha de político, e é por onde entra a visão julgadora da sociedade de padrões engessados e conformistas, que impõem um status inalcançável e que só vai pesar mais no pescoço do protagonista. Então, todos advêm de um lugar potencialmente reprovável.
Talvez um enorme diferencial que Hitchcock reforça e desenvolve aí e que ele trouxe conscientemente de um tabu de Hollywood seria um olhar queer de suas personagens, de modo a enriquecer o confronto entre personagens masculinas através de uma tensão homoerótica velada. Isso advinha, por exemplo, do corpo de obras de Patricia Highsmith, autora assumidamente homossexual e que escrevia arquétipos representativos em todos os seus livros, muitos deles adaptados para o cinema. Vide exemplos como "O Talentoso Ripley" de Anthony Minghella, em 1999, e também adaptado anteriormente em 1960, com o título de "O Sol por Testemunha" de René Clément com Alain Delon... E até mesmo "Carol", recém-vertido pra telona por Todd Haynes com Cate Blanchett em 2015.
Hitchcock sabia disso ao escalar Farley Granger, assumidamente bissexual, não apenas como um dos protagonistas de "Pacto Sinistro", ao construir um flerte extremamente manipulativo e tenso com a personagem de Robert Walker, como tendo o mestre do suspense igualmente colocado o mesmo ator como parte de um casal homoafetivo (algo confesso pelo próprio cineasta, inclusive) em outro clássico um pouco anterior, "Festim Diabólico", de 1948.
Existem várias características bastante pronunciadas de Alfred Hitchcock, tanto como diretor, quanto como autor, colocando-o no guarda-chuva conceitual que os franceses nomeariam de cinema autoral. Isso quer dizer que seu texto era aplicado em imagens com tanto esmero e dedicação como se ambas as formas de contar a história não apenas estivessem perfeitamente conjugadas, mas como se cada uma delas contivesse enorme riqueza de códigos e simbologias próprias. Ou seja, se você escutar apenas aos diálogos, você terá um filme bastante completo, com uma camada de informações que falam por si só, em seus diferentes tons dramatúrgicos, como ironia, sarcasmo, negação, desilusão e etc... Mas se você acompanhar apenas as imagens do filme, você ganhará inúmeras outras informações do contexto desses diálogos e que às vezes, inclusive, são bastante responsáveis por movimentar a trama adiante.
Hitchcock geralmente escolhia argumentos originais ou mesmo adaptações (e muitas destas de livros escritos por autoras mulheres, como Daphne Du Maurier e Patricia Highsmith) que acrescentassem diferentes perspectivas à ordinariedade do cotidiano, através de olhares plurais e/ou opositivos ao status quo representado pela ordem social retratada em seus filmes.
Suas personagens geralmente nunca eram especiais, e sim pessoas insuspeitas que jamais se veriam em meio às intrigas nas quais são colocadas, mas que acabam tragadas por algum dispositivo diferenciado a cada filme e que as coloca, seja por engano, ou por tentações traiçoeiras e mesquinhas da pequenez humana, no epicentro do caos. Uma crítica certeira às hipocrisias nas raízes da suposta estabilidade de poder que o contexto histórico reproduzisse.
Mais uma vez a gente vê um jogo de perspectivas que geraram tensionamentos a partir do eclipse de duas personagens cujas histórias pessoais entram em colisão. Temos uma personagem, na pele de Farley Granger, trabalhada com um olhar mais puro, que passa por um desengano como se tivesse entrado de gaiato no navio, mas cuja trama é muito maior do que a sua vontade pessoal. E outra personagem mais maliciosa, interpretada por Robert Walker, que estimula uma troca de lugares, como em clássicos do naipe de Agatha Christie ou no mito do príncipe e o mendigo, onde a troca de lugares na vida um do outro faria com que fossem insuspeitos perante qualquer coisa que fizessem. A personagem de Walker propõe à de Granger assassinarem seus respectivos desafetos, no caso, o pai do primeiro e a esposa adúltera do segundo, fazendo com que ambos tivessem álibis irrefutáveis.
Isto é utilizado na linguagem do filme de forma espelhada, criando situações em que vemos distorções do reflexo de ambos, de modo que seus pontos de vista enriquecem o fiapo de história. Hitchcock acaba desenvolvendo de forma ainda mais complexa as consequências do confronto de suas visões do que meramente suas motivações, que, se não fosse por isso, poderiam soar datadas por si só. Afinal, querer assassinar uma esposa por adultério é tão moralmente equivocado quanto injustificável, tanto quanto o drama do filho que quer assassinar seu pai porque não consegue superar a sensação de rejeição numa vida mimada. O que torna interessante de fato é que, uma vez espelhados, inclusive na estética do filme, de diversas formas, como até num plano de reflexo nos olhos um do outro, faz com que analisemos a aberração de seus privilégios na rejeição da distorção da imagem do outro.
Essas aberrações da sombra de seus pedestais parece casa de espelhos de um parque de diversões, de modo até assumidamente confesso no filme, como quando a personagem de Walker persegue a esposa adúltera de Granger até um parque de diversões, ganhando contornos de filme de horror psicológico nos planos vertiginosos e cíclicos do carrossel onde eles andam de cavalinho a girar no mesmo eixo uns dos outros, tanto quanto na atração fantasma em que vemos suas sombras crescerem sobre si mesmos. Isso é linguagem semiótica autoral típica de Hitchcock, contando os meandros internos do subconsciente das personagens através de simbologias visuais que conflitam com os diálogos, gerando dialéticas mais enriquecedoras para o espectador do que apenas no que é dito per si.
Inúmeros filmes beberam da fonte da troca de assassinatos para se criar um álibi para o suspeito original que teria a real motivação de matar. Ao matar o desafeto de outrem, ninguém suspeitaria da troca. Desde adaptações quase literais, como "Nunca Beijes um Estranho" de Robert Parr, que apenas muda o gênero da protagonista, que agora é uma personagem feminina, a outras formas de adaptações que brincam com o gênero narrativo do filme, como a comédia "Jogue a Mamãe do Trem" de Danny DeVito.
Mas “Pacto Sinistro” é tão influente que também está até mesmo na inspiração da raiz de linguagem em cineastas especialistas em suspense, filmes de crimes e detetives, como os irmãos Coen, juntando-se à lista de fatores que fazem o bom e velho Alfred Hitchcock continuar a viver eternamente no imaginário da sétima arte mundial.
O filme “Pacto Sinistro” está disponível na nova plataforma de streaming da HBO Max, Looke e Apple TV.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.