Por Deivi Lopes Kuhn e Marco Sobrosa *
Ao implantar a sua estratégia de diminuição do Estado, coordenada pelo Ministro Paulo Guedes, o governo federal está destruindo o patrimônio brasileiro criado desde os tempos de Getúlio Vargas. Precisamos discutir qual será o prejuízo a longo prazo e quais serão os beneficiados por essa venda.
Os economistas costumam usar termos e teorias estranhas (como eu mesmo, Deivi). Porém o bom senso e a inteligência, ainda são as ferramentas mais importantes. Imagine uma fábrica vendendo seu patrimônio, digamos seu prédio, para utilizar o dinheiro imediatamente. Aí ela aluga o mesmo prédio, já que é o único disponível na região. Ao renovar o contrato o comprador poderá cobrar o preço que quiser, já que ela não tem outras opções. Sem dúvida a empresa não cometeria um erro desses. O atual programa de privatização está fazendo justamente isso.
É importante discutirmos os aspectos econômicos desse programa. A criação de estatais não ocorre simplesmente por vontade política, mas por setores que motivam a intervenção estatal. Alguns não provocam interesse da iniciativa privada, como a logística de entrega em municípios remotos executada pelos Correios. Em outros os chamados “Efeitos de rede” são fortes, não permitindo competição e criando monopólios, como o setor de distribuição de energia, executado pela Eletrobras. Ou ainda exploração de recursos naturais que são de todos nós brasileiros como a Petrobrás.
Entre os setores que estão sendo descartados está o de Tecnologia da Informação e Comunicação. O Brasil criou um modelo misto para essa área que, possui uma majoritária participação da iniciativa privada associada a empresas públicas ou de economia mista que garantem para a União, Estados e os grandes municípios, a inteligência e o conhecimento necessários para sua autonomia e a preservação dos dados sensíveis de todos os cidadãos.
Analisando pelo aspecto econômico evidente que entregar nosso patrimônio beneficiará apenas no curto prazo, ou seja, apenas neste mandato. Os grandes prejuízos no médio e longo prazo serão sentidos já no próximo mandato. O governo federal recebeu em 2019 um total de 109,1 bilhões de reais[1]. O objetivo não era equilibrar as contas públicas? Ou o tal déficit público só existe quando é para pagar auxílio emergencial e aumentar o salário mínimo?
Serpro e Dataprev foram inseridos no Programa Nacional de Desestatização – PND em janeiro de 2020, por intermédio de decretos assinados pelo presidente da República. A sina destas empresas começou em 2019, com as posses de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e Salim Matar. Desde então, não foi apresentada qualquer justificativa para que o governo deixe de ter o controle de sua tecnologia e a entregue para empresas privadas, muito provavelmente sob a direção de algum conglomerado estrangeiro. Será apenas uma falta de gestão estratégica ou estão atuando para interesses opostos ao Brasil?
Estas empresas operam com sucesso os principais sistemas estruturantes do governo federal, como o imposto de renda, aposentadorias, orçamento público, comércio exterior, notas fiscais e trabalho. São milhares de sistemas que são armazenados e processados nos centros de processamentos de Serpro e Dataprev, fundamentais para o país.
É importante analisar questões não discutidas nem mesmo dentro do governo. Vamos relacionar os aspectos que deveriam ter sido considerados na tomada de decisão antes mesmo da seleção de inserção no PND:
1. Gestão Empresarial - Financeira
O Serpro e Dataprev são empresas superavitárias e não dependentes de recursos da União. Todas as receitas são oriundas exclusivamente da prestação de serviços contratados. Em 2020, em seus balanços, as empresas apresentaram lucros de R$ 462 milhões e R$ 265 milhões, respectivamente, garantindo novos dividendos para a união.
2. Capacidade operacional
Em conjunto, são quatro centros de dados modernos, dois do Serpro e dois da Dataprev, que operam os sistemas de informações críticos do governo federal, com qualidade e redundância. A operação e independência de terceiros para guardar os dados críticos do Estado é fundamental tanto pela autonomia como para a proteção do cidadão e das empresas.
3. Força de trabalho
Serpro e Dataprev possuem profissionais que dominam diversas tecnologias, permitindo execução, domínio e contratação qualificada de todo o tipo de tecnologia. O governo poderá perder completamente o conhecimento necessário para a manter autonomia nacional. Como em outras áreas de tecnologia elas serão substituídas por desenvolvimento e produção fora do país.
4. Transformação Digital
A fundamental criação de serviços na Internet, na linguagem do marketing, transformação digital, é uma prioridade em todo o mundo, ainda mais em tempos de pandemia. Ao invés do cidadão se deslocar até um órgão público para obter uma certidão negativa de débitos, uma informação do seu processo, um agendamento de consulta médica ou resolver uma pendência com o fisco, ele deve ter à disposição o serviço digital. O governo federal deveria aumentar os atendimentos digitais até a sua amplitude máxima. Quais são os maiores parceiros nesta empreitada? Justamente Serpro e Dataprev.
5. Não repetir os erros do passado
A história já demonstrou que alguns serviços não podem ser simplesmente repassados para iniciativa privada. Devemos aprender com duas situações emblemáticas que provaram esse erro. O primeiro é a privatização da Datamec, estatal leiloada em 1999 e arrematada pela empresa americana Unisys, sem concorrência, por preço simbólico. Dentre os projetos da Datamec estavam a loteria esportiva, o gerenciamento da carteira de financiamentos da casa própria, seguro-desemprego e Caged (cadastro de empregados e desempregados). Todos retornaram para serem processados pelo próprio governo pelo absoluto fracasso dessa privatização. A segunda situação ocorreu em 1998, quando o então ministro da Economia Pedro Malan publicou Portaria determinando que o Serpro repassasse à iniciativa privada os serviços que não eram destinados à referida pasta e ao Ministério do Planejamento, como o gerenciamento da frota de carros e da carteira nacional de habilitação. Os problemas constantes nos sistemas e o preço cobrado na renovação de contrato levaram ao retorno do sistema para o Serpro.
6. Planejamento de longo prazo
Os sistemas de governo possuem um ciclo de vida muito longo, porém os contratos de licitação podem ter duração máxima de 60 meses, dificultando a existência e previsibilidade no futuro. Imagine um problema contratual que impeça a execução de um serviço público essencial, como pagamentos e restituições de impostos.
Já abordamos os aspectos críticos relacionados à segurança nacional, à privacidade de dados e à soberania nacional. Para mais informações acesse: Você sabia que Bolsonaro está tentando vender nossa autonomia tecnológica?
Não houve justificativa lógica ou estudos mostrando alguma vantagem na privatização do Serpro e da Dataprev. Como vender a própria capacidade de gestão dos principais sistemas estruturantes? As consequências dessa ação causarão grandes prejuízos, o país será exposto à lógica do lucro fácil e aos interesses de outros países nos nossos dados. O governo deveria reavaliar os impactos das privatizações. O orçamento de tecnologia já é majoritariamente aplicado no mercado privado, porém gerido e com atuação complementar dessas empresas públicas modelo que adotamos e investimos desde 1964. Ao vender sua inteligência e capacidade de gestão, o governo Bolsonaro irá comprometer o funcionamento do Estado.
Lembramos que os dados sob a guarda e cuidados dessas empresas públicas poderão ser expostos. Os funcionários concursados e regidos pela CLT atuam pelo interesse público em primeiro lugar, buscando proteger cada cidadão e as empresas que atuam no país. Ainda há o agravante que entre os possíveis compradores estão tanto empresas que poderiam explorar nossos dados como competidoras de empresas nacionais, que teriam informações privilegiadas. Para saber mais, convidamos o leitor a acessar o sítio da campanha Salve Seus Dados.
Enquanto cidadãos temos que proteger nosso patrimônio e impedir que o governo cometa esse crime contra o nosso país. Mudar o nosso modelo tecnológico, não é diminuir o Estado, mas sim destruir os que construímos para aproveitar os recursos ainda no seu mandato e deixar nosso futuro ainda mais incerto. Vamos deixar que ele coloque o país à venda?
*Marco Sobrosa é ativista pelo Estado Democrático de Direito e na luta pela preservação do Serpro e Dataprev como empresas públicas (colaboração)
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1]https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/empresas-estatais-tem-lucro-recorde-em-2019