Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico. Até os cães iam lamber-lhe as chagas. (Lucas 16:19-31)
Os leprosos, você sabe, em crísticos tempos, viviam segregados da sociedade.
O infeliz purulento, acometido pela hanseníase, tornava-se um pária, um maldito, um proscrito, uma não pessoa.
Era um morto em vida. Os que viviam, desejavam-lhe a morte.
Hoje há tratamento para a moléstia e ninguém mais atribui a enfermidade à maquinações do capiroto.
Mas há outras chagas a cobrir os corpos de novos lazarentos.
Em Brasília, um sujeito de nome Lázaro Barbosa Ramos, 32, apresentou suas feridas à sociedade.
O pai de Lázaro casou com 17 anos e viveu uma vida de brigas, xingamentos e catiripapos com sua companheira até se separarem.
O pequeno Lázaro foi criado pela avó, o irmão foi assassinado há pouco tempo.
Consta que era trabalhador e labutava na zona rural nos arredores de Brasília, até que as feridas vieram à tona.
Há uma semana ele aterroriza os moradores do DF e do entorno.
Na Ceilândia, invadiu uma casa e chacinou uma família, com requintes de crueldade.
Perseguido, embrenhou-se no mato, em seu encalço há um forte aparato policial: só do DF são mais de 200 PMs, com reforço do BOPE, da PF e da PRF que rastreiam a área, auxiliados por helicópteros e cães farejadores.
Lázaro está numa jornada sem volta, sabe que o querem morto; enquanto isso, na mata, ele mata.
Chegou a trocar tiros com os perdigueiros das forças policiais, ferindo um deles a bala.
Sua fuga espetacular gera grandes especulações, dizem que na escuridão da mata se converte em ave e voa para a copa das árvores ao pressentir o perigo.
Uns atribuem sua camuflagem a forças ocultas, ventila-se que o sujeito tem o corpo fechado e citam um certo livro de Cipriano como sua mentoria espiritual.
Os evangélicos satanizaram o sujeito, não têm dúvidas de que é satanás quem o controla.
Criminólogos de mesa de bar mancheteiam que se trata de um serial killer; nada mais falso, os serial killers escolhem meticulosamente suas vítimas, e há um hiato temporal entre um crime e outro.
O psicólogo forense Leonardo Faria diz que o termo correto para definir Lázaro seria spree killer.
Esse é um tipo de criminoso que comete um assassinato atrás do outro, quase sem intervalos, o que me faz lembrar do documentário Sangue no Barro que conta a história de Genildo Ferreira, o Neguinho de Zé Ferreira.
Em 1996, o potiguar Neguinho matou 14 pessoas num espaço de dois dias, aterrorizando a pequena Santo Antônio do Potengi.
A diferença é que Neguinho conhecia todas as suas vítimas e cometeu os crimes por vingança, uma vez que era vítima de calúnia por todos os que ele matou.
Portanto, em Neguinho temos uma clara motivação.
O que motiva Lázaro?
Quem quer saber. Não falta quem queira matá-lo.
Afinal, o assassino de um assassino é o que mesmo?
Ah, sim, um justiceiro.
Pelas redes sociais e nos comentários dos jornais, cidadãos e cidadãs em pânico exibem suas feridas: chamam o sujeito de monstro e de demônio e desejam que seja caçado e morto.
Não são poucos os que dizem que o fariam com as próprias mãos.
Na verdade, quando se delega ao estado o poder do justiçamento, terceiriza-se a vingança: mate aquele que mata!
Neguinho, emboscado, trocou tiro com a polícia e, vendo-se vencido, atirou no próprio peito.
Os policiais, frustrados por não tê-lo matado, descarregaram suas armas no rosto do defunto, desfigurando-o.
Monstrificar os outros, às vezes, é uma forma de camuflar o monstro que se mostra em nós.
Escrevo tudo isso porque acabo de receber um telefonema de um amigo de Brasília. Ele me contou que sonhou com Lázaro.
No sonho, o amigo corria num parque arborizado, fora da cidade, quando Lázaro saltou à sua frente, com uma sangrenta faca em punho, a ranger os dentes.
Sem saída, meu amigo atracou-se com o criminoso, rolaram no chão vermelho trocando socos e cabeçadas; o amigo o dominou.
Lázaro gritava e esperneava, deitado, com os braços abertos como um Cristo demonizado. O amigo segurava-lhe as mãos e, sem ter outra solução, arrancou o nariz do assassino com uma dentada.
O sujeito se virou e meu amigo decepou-lhe a orelha com feroz mordida, taissicamente.
Acordou apavorado e coberto de suor, lamentando ter despertado, disse ter certeza que a próxima mordida seria na jugular.
Meu amigo, que acabara de assassinar o homem em sonho, se o tivesse feito em vigília não seria preso, porque agiu em legítima defesa.
Seria, mesmo, visto como herói pela sociedade, por ter mostrado grande coragem em fazer aquilo que todos desejavam fazer.
Preocupa-me que alguém realize o sonho do meu amigo, ou que a polícia faça com ele o mesmo que fizeram com Neguinho.
Sim, tenho empatia por todos os que foram vitimados por Lázaro e espero que ele seja preso o mais rápido possível e pague pelos crimes que cometeu, mas não me alegra que façam com ele o que ele faz com os outros.
Tenho mesmo grande curiosidade em saber qual era a real motivação de Lázaro, que feridas ele traz consigo que o faz levantar da porta do homem rico e arrancar-lhe o nariz com uma dentada.
Muitas vezes, o agressor também é uma vítima.
Apavorados com os efeitos, esquecemos de procurar conhecer a causa.
No fundo, Lázaro é apenas mais um miserável cheio de chagas psicológicas e que cansou de mendigar sua condição de gente.
Numa das casas que invadiu em fuga, ele apenas pediu que lhe preparassem comida; comeu e foi assistir ao noticiário.
Agora, de miserável invisível, ele é a estrela da semana na mídia, temidos por todos, apavorando as forças policiais.
Não se esqueça, Neguinho também estava louco para aparecer no programa Patrulha Policial, da TV Ponta Negra.
Apareceu, todo desfigurado.
“Olha aí, ah o meu guri olha aí, olha aí, é o meu guri.”
Palavra da salvação.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.