A implantação do fascismo, se de um lado representa a garantia da estabilidade social, pelo menos para um futuro imediato, traz doutro inconvenientes consideráveis para as próprias classes interessadas na conservação social. Aceitando a ditadura fascista, elas abdicam de boa parte de seus direitos e sua liberdade de ação.
(Caio Prado, “1937”, ensaio de seus “Diários Políticos”)
Vivemos uma época de valorização da ignorância e de resgate das políticas fascistas, tratadas pela mídia corporativa e outras instituições sólidas (que deveriam ser também sérias) como se fossem uma autêntica “teoria conservadora”, digna de espaço, e não um mero disparate irracional e desumano. Por toda parte, em todos os aspectos da sociedade, o que se vê é a ascensão de crendices anticientíficas – absurdas e perigosas.
Tempos parecidos com os de agora – de grave crise econômica, seguida de desvalorização da razão em nome da conservação da ordem capitalista e das altas taxas de lucro – foram experimentados no século passado em diversas ocasiões, sobretudo no período de entreguerras (dos anos 1920 aos 1940).
Este período foi vivido com intensidade pelo então jovem pensador marxista Caio Prado Júnior, historiador e filósofo que nos deixou há três décadas, e que se tornaria ainda em vida um dos maiores nomes da história do nosso marxismo.
Para melhor tentar compreender a desgraça do capitalismo-fascista, que eternamente se repete (enquanto dure), vejamos algumas reflexões de Caio acerca do fascismo que viveu na pele.
Preâmbulo: “o golpe de 2016” (como a própria Folha aprendeu a grafar!)
A consolidação de nosso caótico presente tem como marco os idos de 2004/2005, quando a imprensa conservadora brasileira estabeleceu como sendo uma “verdade absoluta” (ainda que sem provas) o fenômeno do “mensalão”, em meados do primeiro governo Lula.
A partir deste fato – que já é bastante conhecido desde nossa atual perspectiva histórica (que passa dos 15 anos) –, a oposição da grande mídia conservadora operaria sistematicamente a construção do discurso de que o PT teria “modernizado” e até “inventado” a corrupção nacional, o que, ao lado da crise econômica internacional e dos interesses e participação de outras frentes golpistas (Congresso, Judiciário, Exército, financistas, interesses estrangeiros), afundariam a nação no golpe de estado de 2016, que somente agora dá mostras de poder ser superado.
Contudo, se à época o “golpe” de 2016 foi tratado como um legal “impeachment” pelos manuais de redação da palavra-do-mercado – a tríade Folha, Estadão, O Globo –, o que se nota agora é que estes (e outros) jornais corporativos de visão neoliberal começaram recentemente a abrir espaço para artigos que nomeiam corretamente o golpe de 2016 como: “golpe de 2016”!
Na avaliação da presidenta Dilma, em entrevista concedida à imprensa independente no último 31 de março (quando o golpe militar de 1964 completou 57 anos): “estamos vendo hoje pessoas tentando recontar seus próprios atos diante de toda a conspiração golpista; a começar pelos nossos ‘companheiros’ da imprensa; principalmente quando se vê a [dita jornalista] Miriam Leitão, como pessoa, e a Folha de S. Paulo, como instituição, tentando refazer a história para seu lado, como fez o senador Agripino Maia” (que no Senado tentou “recontar” a história, colocando os torturadores como vítimas). “Eles sistematicamente tentam acusar as vítimas; [mas] esse momento nós não podemos esquecer: não podemos deixar que a imprensa manipule os fatos, manipule a história”, completou a ex-mandatária deposta por um Congresso então liderado pelo bandido comum Eduardo Cunha.
Como se sabe, esses grandes e influentes jornais, vozes e cúmplices do mercado, apoiaram o golpe contra Dilma e as mínimas reformas sociais petistas, sempre em prol dos “ajustes estruturais” neoliberais – que é como a oligarquia chama suas contrarreformas de desmonte das políticas sociais (teto de gastos pra educação e saúde, precarização de direitos trabalhistas e aposentadoria, etc). Na sua ingenuidade – ou aposta temerária –, esses grupos corporativos, que moldam o discurso mediano das classes médias e abastadas, acreditavam poder, mais tarde, domesticar figuras bestiais como Temer e seus comparsas do MDB, e depois a milícia familiar de Bolsonaro.
Curiosa aposta? Ou seria antes a própria lógica dos que jogam com a vida dos outros?
Efetivamente, a história mostra que em muitos casos, algumas bestas não podem ou não querem ser domesticadas, nem mesmo quando sua falta de “racionalidade” afeta os seus próprios negócios e os de seus aliados.
Dessa maneira, com a economia declinando perigosamente – com famílias inteiras dormindo nas ruas das metrópoles no inverno que chega, com a Amazônia pegando fogo e os investidores fugindo qual gazelas, com a prática do genocídio sendo usada como campanha eleitoral –, não surpreende que meios do nível parcial de uma Folha de S. Paulo venha permitir em suas manchetes falas que não só permitem o termo “golpe de 2016”, como sugerem a “derrota” desta tramoia; ou que um Estadão, voz da Fiesp, venha colocar em pauta e mesmo questionar a “destruição” (maior do que desejavam) dos direitos sociais.
A ascensão do fascismo segundo Caio Prado
Autor de obra interdisciplinar e abrangente, a partir dos anos 1930 Caio Prado se consolida como um dos expoentes do pensamento marxista brasileiro e latino-americano. Seu marxismo se caracteriza por uma análise crítica e radical da sociedade: atento à realidade nacional concreta e avesso às “teorias” eurocêntricas, muitas vezes copiadas artificialmente de contextos distintos do nosso (como se fossem “cartilhas”).
Por tal “pecado dialético”, Caio entraria em diversos embates e polêmicas, chocando-se com a corrente que então predominava na Internacional Comunista e em seu partido, o PCB, segundo a qual a Revolução Brasileira deveria seguir etapas semelhantes àquelas das nações europeias.
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Desde o entreguerras até o início da segunda metade do século XX, o pensador brasileiro analisou diversos aspectos relativos à ascensão fascista, buscando entender as particularidades históricas, geopolíticas e filosóficas deste fenômeno anti-humano que foi – e é – um problema internacional.
Esses ensaios podem ser lidos em manuscritos pertencentes ao Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP; são compostos de cadernos de estudos e de diários políticos (que incluem resenhas, artigos, análises, apontamentos e recortes de periódicos com anotações pessoais), além de correspondências diversas. São textos em grande parte ainda inéditos em português, embora alguns tenham sido publicados em recente edição argentina dedicada ao marxista brasileiro, intitulada “Caio Prado: Historia y Filosofía” (Edit. Último Recurso/Rosário, em parceria com o Núcleo Práxis da USP), que traz tradução castelhana inédita de uma seleção dos principais escritos do autor ao longo de décadas – publicação que em breve será tema de evento e ciclo de debates em São Paulo.
Caio Prado, nestes estudos, dedica-se a interpretar vários acontecimentos da história do país: desde a formação de um movimento reacionário extremista (o integralismo, versão do fascismo no Brasil), até a tendência “fascistizante” que a partir do meio dos anos 1930 acomete o governo de Getúlio Vargas (desembocando na ditadura do Estado Novo, que perseguiu os comunistas).
Mais tarde, nos anos 1960 e 1970 (e, portanto, desde uma distância histórica já razoável), o pensador comunista irá tratar das consequências socioeconômicas e políticas que a Segunda Guerra legou ao “sentido” de nossa história – ou seja, à direção, aos rumos tomados por nossa nação em seu processo histórico. Veja-se sobre o tema o capítulo tardio “A crise em marcha” (de 1962, atualizado em 1970) e o posfácio “Post scriptum” (de 1976), incluídos em edições mais recentes de seu livro “História Econômica do Brasil”.
Contexto de crise: o anúncio do fascismo no entreguerras
Em meados dos anos 1930, no período de crise social e econômica chamado “entreguerras” – que culminaria com a Segunda Guerra – Caio Prado escreve em suas crônicas políticas de viagem “URSS: um novo mundo” que a Europa Ocidental não rumava para uma forma social superior, mas sua sociedade estava sim regredindo. Para ele, o “projeto social-democrata” – que havia predominado em nações mais industrializadas (Inglaterra, Alemanha) – não tinha trazido um progresso social, mas pelo contrário, atrasara os planos de construção de uma sociedade menos desigual, “socialista”.
Por estes tempos, diz Caio, somente os “bolcheviques” – referência ao partido que liderou a revolução na Rússia e fundou a União Soviética – mantiveram em guarda a luta pela “igualdade entre os homens”, este lema sobre o qual as “democracias burguesas” muito falaram, mas que na realidade nunca lhes foi mais do que um vazio discurso “pomposo”.
Partindo de tais reflexões, o marxista brasileiro conclui que é preciso recusar a teoria do “evolucionismo social” ou “etapismo”: dogma que acreditava que a evolução histórica seria um processo rígido com etapas fixas, passando do feudalismo necessariamente ao capitalismo, antes de poder atingir o socialismo. Como mencionado, esta teoria buscava transplantar forçadamente a países periféricos, como o Brasil, os modelos revolucionários europeus (países com realidades tão diferentes das nossas).
Por conseguinte, ao recusar a ideia do “etapismo”, Caio Prado recusa também a ideia do “aliancismo”, segundo a qual a Revolução Brasileira deveria se pautar em uma estratégia política de aliança entre classes sociais supostamente “nacionalistas” (trabalhadores e uma facção dos patrões/burgueses). Tal tese política acreditava que haveria, dentre as elites brasileiras, uma parcela que seria progressista: a suposta “burguesia nacional”.
Contudo, dada a correlação de forças – demasiado adversa às classes baixas –, a tese aliancista colocava os trabalhadores, ainda que temporariamente, como aliados submissos dos “burgueses nacionais” (a quem os proletários deveriam submeter-se, enquanto não se completasse a idealizada “revolução burguesa”).
O fenômeno das burguesias nacionais (burguesias que se aliaram com seu povo diante da ameaça estrangeira) tinha de fato existido em certas nações europeias e asiáticas. Porém, na nossa realidade brasileira isso era – e ainda é – um engodo –, como bem observa Caio Prado: a burguesia do Brasil se acredita branca, venera os valores do estrangeiro e não se identifica com seu povo, não tem projeto de país, é sócia-menor do imperialismo.
Segundo Caio, é crucial que cada nação construa sua própria – e cuidadosa – leitura do marxismo, conforme as peculiaridades de sua história. E neste caminho, ele passa a se dedicar a entender o fascismo – um fenômeno que percebe como tendo sido gerado na longa crise europeia que vai da Primeira à Segunda Guerra, passando pela quebra da bolsa de 1929.
Na concepção caiopradiana, o fascismo é uma nova roupagem da extrema-direita, um desvio não liberal do capitalismo – fruto da situação socialmente instável do período entreguerras.
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Neste ponto, é interessante citar a semelhança de suas ideias com as de um importante historiador marxista europeu, um pouco mais jovem que Caio, cujas conclusões sobre o fenômeno fascista são próximas. Para Eric Hobsbawm (quem escreve décadas depois, já com um mais amplo panorama histórico), a extrema-direita fascista deriva do “colapso” das “velhas classes dominantes”: onde as antigas elites se mantiveram organizadas, não houve “necessidade de fascismo”, afirma.
Além disso, para o marxista inglês – como para o brasileiro –, o regime fascista se funda nos interesses econômicos das classes dominantes, caracterizando-se por uma gestão da economia de modelo “capitalista não-liberal”, e ainda, tendo a particularidade de ser um movimento de massas, um populismo de direita que se usa da alienação social para, mediante espetáculos populistas, mobilizar a população.
Este aspecto do fascismo como uma “escolha” das elites é algo que deve ser sempre reiterado e detalhado historicamente, pois vem sendo sub-repticiamente questionado por vozes pseudo-imparciais (de acadêmicos que comercializam suas ideias sob medida para a amplificação da imprensa corporativa).
[Continua]
*Este artigo tem o propósito de divulgar e popularizar o debate sobre temas marxistas; trata-se de uma versão reduzida do ensaio teórico “No sentido do fascismo”, capítulo do livro “Brasil e América Latina na Segunda Guerra Mundial” (Editora CRV, 2017).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.