Por André Suzart da Cunha Souza e Carolina Antunes Condé de Lima *
(Este é o terceiro artigo da série especial Conexão Rio-Jerusalém, do blog Terra em Transe. Leia o primeiro artigo aqui, de autoria de Gizele Martins; o segundo, de Victoria Perino, pode ser lido aqui; a série é baseada no artigo científico de Bruno Huberman e Reginaldo Nasser “Pacification, Capital Accumulation, and Resistance in Settler Colonial Cities The Cases of Jerusalem and Rio de Janeiro”).
Após o início da nova escalada de violência na Palestina, alguns colunistas se pronunciaram dizendo que não se comoveram com a violência em Jerusalém e com as mortes que se seguiram na Faixa de Gaza porque choravam os “seus” mortos – os que foram chacinados na favela do Jacarezinho – como se houvesse uma competição de quais mortos merecem mais as nossas lágrimas A operação militar, considerada uma das mais letais da história recente do estado do Rio de Janeiro, deixou 28 mortos (27 civis e um policial) e uma comunidade em estado de choque. Até o cessar fogo de 21 de maio, mais de 230 pessoas foram mortas na Faixa de Gaza e mais de vinte na Cisjordânia. Um dos depoimentos sobre a chacina no Rio de Janeiro que mais repercutiram foi sobre a execução de um jovem no quarto de uma menina de 9 anos e a recusa dela em voltar para casa pelo que vivenciou ali. Nos últimos dias, outro relato, desta vez vindo de Gaza, viralizou. Nele uma menina afirma que gostaria de ser uma médica para poder ajudar seu povo, mas ela só tem 10 anos e não há nada que possa fazer.
Há quem olhe para essas duas histórias e veja apenas uma coisa em comum: são duas meninas vítimas da violência de Estado. Mas há mais em comum entre a violência do dia 6 de maio, no Jacarezinho, e outras tantas no cotidiano de várias comunidades esquecidas pelo Brasil e o que está acontecendo na Palestina, do que alguns querem (ou podem) ver. A atual escalada de violência do Oriente Médio, que teve seu estopim após mais uma tentativa de desapropriação de famílias palestinas em Sheikh Jarrah, é fruto de uma lógica de ocupação colonial imposta pelo Estado de Israel nos territórios palestinos desde 1948.
Povos colonizados, corpos violentados
A ideia de ocupar e substituir a população original do Estado se perpetua via práticas e políticas desde a criação do Estado de Israel, sendo Sheikh Jarrah apenas mais um episódio dessa história. A substituição da população palestina oprimida por uma de colonos, na tentativa de “judaizar” a terra, encontra paralelos com processos também praticados pelo Estado brasileiro – como por exemplo o de promover a vinda de imigrantes europeus, ao final do século XIX e que se manteve até os anos de 1930, para embranquecer a população. Como continuação dessa política, podemos citar as medidas de esterilização em massa de mulheres negras no país, além dos inúmeros e contínuos casos de violência racista diária sobre as comunidades populares como um todo. A consequência de ambas as práticas é a criminalização, segregação e o apagamento das populações que foram expulsas e marginalizadas: os palestinos e a população negra brasileira.
A criminalização dos corpos racializados, tanto cá como lá, incorre na securitização e militarização das áreas que esses grupos habitam. Ou seja, eles são transformados em inimigos e ameaça direta à existência de um projeto de Estado. Em Israel, esse projeto é o de um Estado judeu, no Brasil é o projeto de um Estado embranquecido e “moderno”. Ambos os programas têm como consequência a limpeza étnica palestina e o genocídio da população negra no Brasil.
Por isso, ainda que lágrimas não tenham rolado, há que se entender uma coisa: mesmo que tenham um oceano que as separe, as mortes na Palestina espelham as mortes no Rio de Janeiro no começo do mês e de tantas outras que, infelizmente, acabaram virando rotina nos noticiários. O Brasil importa de Israel tecnologia de guerra, além de treinamento militar de contenção e repressão social.
Acordos militares também são parte da agressão
Esse processo de importação e renovação do arsenal brasileiro, que data de ao menos o envio das tropas militares ao Haiti em 2004, intensificou-se com a preparação para os eventos da Copa do Mundo de futebol em 2014 e das Olímpiadas de 2016. O interesse brasileiro por esse tipo de cooperação articula-se com a experiência israelense de opressão e controle social dos territórios palestinos, vistos como um verdadeiro laboratório a céu aberto de desenvolvimento de armamentos e políticas de repressão.
Enquanto alguns escolhem por quais mortos chorar, está em tramitação na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional mais uma proposta de acordo de cooperação militar entre Brasil e Israel: a MSC 371/19, assinada durante a visita a Israel do presidente Bolsonaro, em 31 de março de 2019, tem como principal objetivo promover a cooperação em assuntos de Defesa, principalmente no que diz respeito ao intercâmbio de tecnologias, compartilhamento de conhecimento e experiências operacionais, científicas e tecnológicas e cooperação em quaisquer outros temas relacionados à Defesa que possam ser de interesse mútuo. É possível imaginar, portanto, que todas as formas de violência praticadas nos territórios palestinos seriam, mais uma vez, adaptadas e usadas contra a população brasileira na tentativa de garantir o controle social de grupos tidos como indesejáveis, especialmente aqueles grupos racializados moradores das favelas, como sempre se viu.
Essa não é uma competição por quem se deve chorar, nem de quem chora mais, ou qual situação é pior. O que é importante é entender que ambos os casos não estão isolados e tratá-los como separados acaba servindo apenas à lógica de opressão e violência que perpassa o Brasil e a Palestina. A menina que não quer voltar para casa e aquela que gostaria de poder fazer algo pelo seu povo, mesmo separadas por mais de dez mil quilômetros de distância, são ambas vítimas de uma mesma lógica de violência colonial.
*André Suzart da Cunha Souza é graduando em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI).
*Carolina Antunes Condé de Lima é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.