Nesta semana, teremos a médica Mayra Pinheiro, a capitã cloroquina, depondo na CPI do genocídio. Ela ficou “famosa” em 2013 quando gritou nos ouvidos dos médicos cubanos, na ocasião da chegada deles ao Brasil pelo programa Mais Médicos, para que voltassem para a senzala.
Ganhou mais holofotes quando virou secretária da Saúde no governo Bolsonaro e defendeu o uso de tratamento precoce que a comunidade científica já mostrou não ter eficácia comprovada.
Quero alertar que será uma médica que de burra não tem nada contra senadores e senadoras. Aposto que Mayra Pinheiro vai vir segurando papéis e falará sobre método científico e eficácia com a autoridade conferida aos profissionais da Saúde. Será uma médica trazendo “dados” contra senadores. O debate será tenso e extremamente perigoso.
O assunto é muito delicado, profundo e controverso e alerto que Mayra Pinheiro pode deixar quem anda defendendo a ciência de uma forma ingênua no chão.
Sem querer fazer propaganda – mas já fazendo – é sobre isso (e mais outras coisas) que trato no meu novo livro Como dialogar com um negacionista, publicado pela editora Livraria da Física.
A polarização "Eles negacionistas são burros" versus "Nós defensores da Ciência somos inteligentes" não se sustenta e, infelizmente, teremos mais um caso nesta semana mostrando os riscos de seguir por este caminho. Muitas vezes, estou sendo motivo de piada nos comentários de minhas postagens em redes sociais pelas pessoas que me seguem quando aponto a necessidade de refletirmos melhor sobre o assunto e sobre a necessidade do diálogo. Gostaria, sinceramente, de estar errada em insistir nisso. Porém, percebo todo santo dia que desprezá-lo é contribuir para o aumento do caos e do número de mortes.
Há como defender o uso e o não uso de um medicamento, como estamos vendo neste país. Porém, como o debate nunca se aprofunda, a população paga, muitas vezes com a própria vida, por ficar no meio desse tiroteio de argumentos.
Como uma pesquisadora, defensora da ciência e atenta ao mal em potencial que o capitalismo dissemina em qualquer esfera, sou uma das primeiras a duvidar e a defender a dúvida em relação às “verdades científicas”. Sei muito bem que há pesquisas financiadas por empresas e que um cientista não é um robô e sim uma pessoa, portanto, está sempre sendo atraído por coisas que despertem seus interesses e vão ao encontro de seus valores. Dito de outra forma, defendo a ciência sem perder a capacidade de prestar muita atenção ao modo de fazer científico e, sendo o caso, criticar e apontar eventuais erros. Isso é bom, honesto e saudável.
O ponto é que com o avanço da extrema direita, o que era bom, honesto e saudável virou arma na mão dessa gente mal intencionada. Uma coisa é fazer uma crítica construtiva, ser agente de uma mudança e lutar para que os benefícios da ciência sejam democratizados. Outra, bem diferente, e extremamente perigosa, é promover a falsa simetria dos argumentos desqualificando como um todo o trabalho de especialistas baseado nas controvérsias internas e naturais que ocorrem no curso da ciência fazendo afirmações sem sentido e totalmente levianas, como por exemplo, que dentro das instituições de pesquisa só tem comunista ou que o tratamento precoce tem eficácia comprovada.
Por isso, insisti no meu novo livro sobre a importância de não sermos ingênuos quando entramos nessa discussão. Para quem acha que com um negacionista é burro e que a coisa se resolve com um taco de beisebol, como leio em inúmeros comentários todas as vezes que compartilho o lançamento do “Como dialogar com um negacionista”, penso que essa pessoa seria facilmente esmagada com as palavras e a articulação da capitã cloroquina.
Ainda que ela pague pelos crimes que cometeu e responda pelas mortes que poderiam ter sido evitadas, se deixá-la falar (e é necessário que ela fale numa CPI), as falas serão recortadas e transmitidas em grupos de WhatsApp com manchetes sensacionalistas em capslock comemorando “a vitória da doutora contra Renan Calheiros”, algo nessa vibe: VEJA MAYRA PINHEIRO JANTANDO RENAN CALHEIROS. Aff...
O grande público que não terá tempo nem disposição para acompanhar toda a história e a CPI possuirá, mais uma vez na mão, um material tão fácil de ser transmitido como um vírus.
Tempos complicados eram aqueles que o povo ia para a rua “por 20 centavos”. Os tempos, hoje, estão complicadíssimos.
Bolsonaro quis ter o controle da Anvisa, do Inpe e do Ibama achando que concentrar em si a autoridade dessas instituições resolveria a questão da desconfiança - que volto a dizer, é saudável no meio acadêmico e científico porque nos deixa alertas quanto aos erros possíveis de serem cometidos. Estar atento ao jogo é importante, querer ganhar mudando as regras é ausência de caráter. Percebem a diferença?
Penso que estamos nesta lama – e temos ainda como nos enterrarmos mais – porque estamos fazendo uma defesa da ciência que não se sustenta. A capitã cloroquina tem capacidade de derrubar com menos de dez minutos de fala o discurso de quem começa a discussão defendendo a ciência pelo método científico que é um tema de extrema complexidade. Temos uma ampla bibliografia sobre os conceitos de verdade, de ciência e, portanto, do método científico. São necessárias leituras e disposição para esse diálogo.
Minimizar ou ridicularizar as afirmações de Bolsonaro e de seus pares é desconsiderar algo super importante: as narrativas mentirosas não são frutos de uma mente alucinada e sim de uma estratégia política que muitas pessoas, por reduzir o negacionismo a uma questão cognitiva, acaba mordendo a isca.
A falsa simetria precisa ser escancarada nesse debate. A balança não está equilibrada de forma alguma, ou seja, não é somente “uma questão de opinião” ou de liberdade para profissionais de saúde prescreverem o que acham melhor para o paciente. Ou, como disse Bolsonaro na live de 16 de julho “Se não tem alternativa, por que proibir? ‘Ah, não tem comprovação científica que seja eficaz.’ Mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem.” Não se trata disso. Muitas vezes, o melhor é, em caso de dúvida, não fazer. O “tanto faz” é falso neste caso.
Debater argumentos científicos sobre eficácia da cloroquina na CPI é tenso. Acredito que seja possível somente se as instituições forem devidamente valorizadas.
Como eu acredito que as instituições andam juntas com a questão da saúde pública, há tempos recolho algumas informações sobre o tema. Faço uso delas para fazer um bom debate com quem vem falar sobre tratamento precoce. Divido com vocês parte da minha munição. Acho que vamos precisar, mais do que nunca, usá-las nesta semana.
1 - A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce para Covid-19 com qualquer medicamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal, dióxido de cloro), porque os estudos existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais.
Fonte:
https://infectologia.org.br/2021/02/25/repudio-ao-tratamento-precoce/
2 - Não existe comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes contra a Covid-19. A orientação da SBI está alinhada com as recomendações de sociedades médicas científicas e outros organismos sanitários nacionais e internacionais, como a Sociedade de Infectologia dos EUA (IDSA) e a da Europa (ESCMID), Centros Norte-Americanos de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Agência Nacional de Vigilância do Ministério da Saúde do Brasil (ANVISA).
Fontes:
https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/hcp/therapeutic-options.html
https://eacademy.escmid.org/escmid/2020/covid-19/293257/n.petrosillo.e.presterl.j.p.stahl.m.sanguin
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53370870
3 - A agência regulatória norte-americana, o FDA, elenca uma lista de medicamentos que não têm eficácia comprovada contra a Covid-19. Entre eles: fosfato de cloroquina, sulfato de hidroxicloroquina e ivermectina.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53058069
4 - O kit-Covid além de não ajudar, está causando problemas sérios e levando pacientes a óbito. “O médico intensivista Ederlon Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, destaca que entre 80% e 85% das pessoas não vão desenvolver forma grave de covid-19. Para esses pacientes, usar o "kit Covid" não vai ajudar em nada. Também pode não prejudicar, SE a pessoa não tomar doses excessivas nem tiver doenças que possam se agravar com esses medicamentos.”
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56457562
5 - Segundo chefes de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência no Brasil, isso tem contribuído de diferentes maneiras para aumentar as mortes no país, por exemplo, retardando a procura de atendimento pela população, absorvendo dinheiro público que poderia ir para a compra de medicamentos para intubação, e dominando a mensagem de combate à pandemia, enquanto protocolos nacionais de atendimento sequer foram adotados, como mostrou a BBC News Brasil.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56457562
6 - Os números da pandemia em todo mundo mostram que a maior parte das pessoas que contrai Covid-19 se recupera. Por isso, segundo especialistas, remédios apresentados como "cura" acabam "roubando o crédito" do que foi apenas uma melhora natural.
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53896553
7 - Temos que tomar cuidado com as fakenews e apurar com detalhes as notícias verificando as fontes. As notícias que afirmaram que o tratamento precoce zerou internações por tratamento precoce são todas falsas.
8 - O uso da Ivermectina é desencorajado por entidades médicas e farmacêuticas, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela própria fabricante do medicamento. Já há casos de hepatite medicamentosa por conta do uso excessivo do medicamento.
De acordo com o NIH (National Institutes of Health ou Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos), ainda não há dados suficientes sobre a eficácia da ivermectina. No dia 5 de março, o FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora de medicamentos e alimentos dos EUA) publicou um alerta pedindo que a população dos Estados Unidos não tomasse o vermífugo para tratar a Covid-19.
Fonte:
https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/antiviral-therapy/ivermectin/
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O que fazer? Sigamos os que dizem os maiores especialistas. O Brasil, como estamos vendo, não é exemplo para nada na luta contra esse vírus.
A recomendação é: usar máscaras boas como PFF2 e N95 (as de pano já não estão dando conta mais) e manter o distanciamento social enquanto a vacina não chega.
Fonte:
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Enfim, torço para que os senadores e as senadoras preparem-se muito bem e que as pessoas responsáveis pelas mortes que poderiam ter sido evitadas paguem por cada uma delas. Creio que Mayra Pinheiro terá o que merece em um breve futuro. Temo, porém, que, antes, ela faça mais estragos.
Sigo na esperança de que diálogos aconteçam. Mas, para tanto, é necessário descer do salto alto e parar de subestimar a capacidade intelectual do adversário político. Somente assim, conseguimos nos preparar corretamente para eles sem nos igualarmos, em atitude, ao nosso inimigo.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.