Não é momento para revisar o Plano Diretor – Por Raimundo Bonfim

Em meio a todos os problemas econômicos, sanitários e com a crise social se agravando, os despejos e remoções continuam. Em situações sem agravamento das crises já é cruel a execução de despejos, com pandemia é ainda mais desumano

Foto: Agência Brasil
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Com a aceleração da contaminação por coronavírus, a cidade de São Paulo vive um quadro dramático de hospitais lotados e falta de leitos de UTI e, junto com a doença, vê aumentar o fosso da desigualdade social, com desemprego, miséria e fome. Neste cenário de doença e pobreza, de luta pela vida, a administração municipal da cidade insiste em pautar a revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE), que é, sem dúvida, um tema importante, mas que se tornou secundário diante da grave situação da pandemia, que põe em risco, todos os dias, a vida de centenas de pessoas.

A versão mais recente do PDE da cidade de São Paulo foi aprovada em 2014 e sua revisão ficou programada para acontecer em 2021. O documento de 2014 já previa que a Prefeitura atuasse com urgência para melhorar o déficit de moradia para a população de baixa renda (com a elaboração de programas habitacionais), o saneamento básico e mobilidade urbana. Não foi o que vimos de 2014 até aqui. A falta de políticas públicas, nessas e em todas as áreas, é sentida cotidianamente. Só na cidade de São Paulo, cerca de 24 mil pessoas estão vivendo nas ruas; em 2015 eram 16 mil, o que representa um crescimento de 53%. O déficit habitacional é de 830 mil moradias, enquanto 1,4 mil prédios estão vazios. Em muitos casos, famílias inteiras tiveram que deixar suas casas porque perderam seus empregos e ficou impossível pagar o aluguel. Segundo pesquisa da Fundação Seade, a taxa de desemprego na Grande São Paulo é de 18,4 %, o que corresponde a 1,863 milhão de desempregados.

Em meio a todos os problemas econômicos, sanitários e com a crise social se agravando, os despejos e remoções continuam. Em situações sem agravamento das crises já é cruel a execução de despejos, com pandemia, em que uma das orientações dos especialistas é ficar em casa para diminuir a transmissão do vírus, é ainda mais desumano. E, apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendar a suspensão dos despejos e remoções no período da pandemia, a prática continua em todo o Brasil. A Central de Movimentos Populares (CMP) e outras entidades lutam pela aprovação do Projeto de Lei 1975/2020, que prevê a suspensão dos despejos no campo e nas cidades, durante o período da pandemia da Covid-19. 

Quando se pensou a revisão do Plano Diretor para este ano, nem de longe se imaginava que o Brasil e o mundo passariam por uma pandemia tão avassaladora, que mudou a conjuntura de tal maneira que se faz necessário alterar projetos, repensar agendas e focar no que é prioridade: a preservação da vida. Quando se propõe a revisão de um instrumento tão importante, principalmente para quem utiliza o transporte público todos os dias, anda quilômetros para deixar os filhos nas creches ou para utilizar uma Unidade Básica de Saúde (UBS), que vive o dia a dia da cidade, não se pode fazê-lo sem a participação popular, sem um amplo debate em que o ator protagonista deste processo, o povo, esteja presente. Este é um processo essencialmente democrático. É uma construção coletiva.

De fundamental importância para o desenvolvimento urbano da cidade, a revisão do Plano Diretor será uma oportunidade para se debater com profundidade a função social da propriedade e fornecer caminhos para a construção de uma cidade para todos e todas. É uma luta por direito à cidade e, por isso mesmo, não se pode discutir uma questão tão importante em um cenário em que ficar em casa é uma das recomendações para conter a disseminação do coronavírus. O urgente neste momento é pautar uma agenda emergencial de inclusão e justiça social urbana, por moradia digna, articulada com transporte, mobilidade urbana, saneamento, emprego, cultura, lazer, saúde e educação.

Este não é, definitivamente, o momento para se debater a revisão deste documento. Mas quando for o momento, precisamos garantir que o processo de revisão seja aberto à participação de toda sociedade e movimentos populares e sociais, por meio de audiências públicas presenciais, de reuniões nos bairros, inclusive nas periferias mais distantes, com a presença de representantes do poder público para a apresentação de diagnósticos, discussão de propostas e formulação do texto que será encaminhado à Câmara dos Vereadores.

Propor a participação da sociedade civil somente pela internet, como a gestão municipal e sua base na Câmara dos Vereadores têm feito, afasta da discussão os principais interessados em que a cidade seja um espaço para se se viver com dignidade e não para se obter lucro para uma minoria. A inclusão digital na cidade ainda está longe de ser uma realidade, cerca de 25% da população da não tem acesso pleno à internet, além das limitações do formato online para a maioria das pessoas. Por que então impor a discussão de maneira tão apressada, a toque de caixa, de um tema tão relevante? A quem interessa revisar o Plano Diretor sem a participação popular, já que a população está preocupada com a pandemia, comida e emprego?

Uma das questões de que trata o Plano Diretor de São Paulo é regrar, em última instância, o uso da propriedade urbana, é definir se um terreno específico será destinado para a geração de lucro privado ou para atender às necessidades da população mais pobre. É o Plano Diretor quem estabelece normas quanto à altura máxima de prédios nas diferentes regiões do município e em que locais podem ser construídos. O setor imobiliário, ávido por “passar a boiada” do concreto em cima do meio ambiente e seja de quem for, tem defendido que a revisão do Plano Diretor é necessária para “destravar” a cidade. Afirmam isso na contramão do que dizem os números da construção civil, que mostram que, em 2020, portanto durante a pandemia, o setor teve crescimento de 13%. E este aumento não beneficiou a população com baixa renda; é apenas mais um dado que confirma que, mesmo no difícil quadro econômico, social e sanitário do país, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres.

No início deste mês, quase 500 entidades de associações de moradores, movimentos populares e sociais, entre elas a CMP, organizações políticas e urbanistas, lançaram a Frente São Paulo Pela Vida, clamando pelo adiamento da revisão do PDE durante a pandemia. Trata-se de uma forte e ampla mobilização para que todas as atenções sejam voltadas para uma agenda pela vida. Adiar a revisão é pôr a vida em primeiro lugar e garantir a construção de uma cidade ouvindo as vozes de quem mais sofre com a pandemia. Sem participação dos movimentos populares estaremos fadados a uma revisão feita de forma antidemocrática, que privilegia os grandes grupos, seja do setor imobiliário, da construção civil e outros grupos privados que fazem da cidade uma mercadoria, para venda e enriquecimento. Nossa prioridade neste momento deve ser a ampliação e articulação de medidas de enfretamento à pandemia da covid-19 e não a revisão do PDE.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.