Por Ana Luísa Calvo Tibério e Bruno Huberman *
O combate à pandemia ainda encontra obstáculos pela ausência de um tratamento específico para Covid-19, pela desigualdade na produção e distribuição de vacinas no mundo e pela irresponsabilidade de governantes que insistem em políticas negacionistas nesse período. Desde o início da pandemia, cerca de 3,14 milhões de pessoas morreram em todo o mundo e 150 milhões foram infectadas.
De um lado, países que vinham sendo considerados casos de sucesso no combate ao vírus, como o Uruguai, enfrentam um novo surto. De outro, diversas nações africanas têm conseguido atravessar a pandemia sem picos de contaminação, enquanto alguns países asiáticos, como o Vietnã, conseguiram interromper a propagação da doença e evitar novas ondas. Ainda no ano passado, a professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Deisy Ventura, avaliou que a crise sanitária escancararia o acirramento de uma competição econômica e diplomática, impulsionando uma crise econômica global com poucos precedentes.
Em entrevista ao Programa Terra em Transe, organizado pelo GECI/PUC-SP em parceria com a TV PUC e o Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais (PET), o médico epidemiologista e professor titular da Faculdade de Medicina da USP, Paulo Lotufo, observou que a geopolítica está diretamente relacionada à disseminação do vírus. É o que explica, por exemplo, a alta de números de casos no Uruguai, que foi, em menos de um mês, de líder no combate à pandemia para líder em mortes na região. Para Paulo Lotufo, sua localização entre Argentina e Brasil, com fronteiras porosas e fluxo de residentes entre os países, foi fator determinante para o aumento exponencial de casos.
A posição geográfica, lembra Lotufo, foi também elemento fundamental para o desempenho da pandemia na Oceania, pois o seu isolamento facilitou o fechamento efetivo das fronteiras em países como a Nova Zelândia. No caso do continente africano, ainda, a baixa de contaminações e de casos também poderia ser, pelo menos em partes, explicada por fatores geopolíticos, destaca o pesquisador, uma vez que o fluxo de pessoas ao continente é comparativamente menor do que em outras partes do globo.
E se o fluxo do vírus está relacionado à geopolítica, seu combate também está. Em meio a tantas incertezas geradas pela pandemia, já é sabido que a vacinação em massa da população mundial é a melhor solução para reverter o quadro atual. Desde o início de 2020, iniciou-se uma corrida pela busca de vacinas em diferentes partes do mundo e produzir e distribuir vacinas ganhou um sentido econômico evidente.
O atual cenário de desigualdade global na distribuição de vacinas ainda reproduz a desigualdade de poder na geopolítica. As nações ricas e mais poderosas monopolizam a vacinação até o momento, enquanto os países mais pobres não conseguem ter acesso a elas. Estes contam com mecanismos de solidariedade, como o Covax, bastante limitados e encontram dificuldade na produção própria devido à recusa dos países mais ricos em quebrar a patente. Em abril, enquanto na África, continente com a menor taxa de vacinação, apenas uma dose foi aplicada para cada 100 habitantes, os Estados Unidos já contam com doses suficientes para imunizar 400 milhões de pessoas, 70 milhões a mais do que a população total do país.
Para Lotufo, há um grande responsável pelo fracasso global no combate à pandemia: Donald Trump. O negacionismo do ex-presidente desestruturou a agência estadunidense CDC (Centre for Disease Control and Prevention), que tem uma relevância maior no mundo ocidental para ditar o modo de combate a crises de saúde globais, já observada nos casos recentes das epidemias de Zika e H1N1, do que a própria OMS (Organização Mundial da Saúde). O resultado foi um atraso e uma falta de coordenação mundial, que acabou permitindo ao vírus se espalhar mais facilmente através das fronteiras.
Contudo, o governo de Joe Biden não tem se destacado como um novo líder global no combate à pandemia e tem preferido aprofundar a política “America First” de seu antecessor: os EUA não exportou uma única vacina produzida no país e tem focado a sua política externa em questões climáticas.
Pandemia e neoliberalismo
Na entrevista, o médico destacou também a relação intrínseca entre a pandemia e o neoliberalismo, de modo que a primeira tem colocado esse modelo econômico em xeque. Para ele, relativa parcela das consequências da crise sanitária está diretamente relacionada ao esfacelamento progressivo do Estado e o desmantelamento de serviços públicos de saúde, responsáveis pela concretização de medidas epidemiológicas efetivas.
Ao mesmo tempo, o papel do Estado está sendo questionado, até mesmo por aqueles que historicamente defendem a liberalização do mercado e o enfraquecimento estatal. Segundo a economista e professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, Laura Carvalho, a pandemia reforça cinco papéis fundamentais do estado: o de estabilizador da economia, investidor em infraestrutura física-social, protetor dos mais vulneráveis, provedor de serviços e empreendedor.
Nota-se, claramente, que alguns Estados que têm histórico de investimento no desenvolvimento de conhecimento, ciência e tecnologia, são aqueles que estão à frente das produções de vacinas no mundo. No caso da britânica AstraZeneca, por exemplo, o investimento do Estado britânico foi da ordem de 95%.
Já o caso dos EUA merece destaque: em março, o Congresso dos EUA aprovou um pacote de US$ 1,9 trilhão para estimular a recuperação da economia do país e propôs mais US$ 2,2 trilhões em investimentos em infraestrutura, o qual ainda não foi aprovado pelo poder Legislativo. A isso, soma-se um novo pacote apresentado nesta quarta-feira (28) chamado “Plano para as Famílias Americanas”, com custo de US$ 1,8 trilhão, cujo propósito será a ampliação dos serviços de saúde e educação.
Lotufo criticou, ainda, o método da escolha das prioridades da vacinação que se estabeleceu internacionalmente: idade acima do trabalho. Segundo ele, essa escolha privilegiou pessoas brancas de classe média e alta, em particular mulheres, que têm condições materiais para uma vida mais longeva em detrimento daqueles trabalhadores mais jovens que são obrigados a sair de casa para ganhar a vida e ficam mais suscetíveis ao vírus. De forma reveladora, a doença tem matado mais aqueles que não são prioritários na vacinação: as populações periféricas, negras e trabalhadoras.
Esses e outros exemplos evidenciam tanto as alterações promovidas no cenário político, econômico e social a partir da crise de Covid-19, quanto as desigualdades patentes nesse processo. É o que buscamos abordar na entrevista realizada com o professor Paulo Lotufo, a qual demonstrou também a importância do diálogo entre as áreas de medicina epidemiológica e de relações internacionais.
Confira a parte 1 e a parte 2 da entrevista com o professor Paulo Lotufo
*Ana Luísa Tibério é bacharel em Direito pela USP e graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e Bruno Huberman é doutor em Relações Internacionais e professor da PUCSP. Ambos são membros do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.