Sobre monstros e Bolsonaro – Por Chico Alencar

Quem tortura não se mostra como monstro sempre. Como afirmou Hannah Arendt, para quem não conhecia seu passado, no julgamento, Eichmann parecia alguém normal

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Foi chocante a imagem do presidente Jair Bolsonaro, cercado de áulicos sem máscaras (como ele), exibir um cartaz fazendo referência aos “CPFs cancelados” devido ao Covid-129.

E foi chocante por mais de uma razão.

Em primeiro lugar, porque a gracinha foi feita quando o país se aproxima dos 400 mil mortos pela pandemia. Bolsonaro e seus puxa-sacos fazem piada disso.

É o caso de se perguntar: “Qual é a graça, seu idiota?”

Depois, porque essa expressão “CPF cancelado” é usada pelos milicianos amigos do peito do presidente para se referir às pessoas que morreram. Mais: às pessoas que, em geral, morreram assassinadas. A piada é, portanto, de péssimo gosto.

Vendo a imagem do presidente genocida com o cartaz, me veio à cabeça o que escreveu a filósofa Hannah Arendt, escritora alemã de origem judaica. Em 1963 ela publicou “Eichmann em Jerusalém”. A série reuniu os cinco artigos que Hannah escrevera para a “The New Yorker”, depois de acompanhar o julgamento de Adolf Eichmann. Ele tinha sido capturado na Argentina, onde vivia escondido, e levado para Israel. Hannah Arendt surpreendeu muita gente ao descrever Eichmann – que cometeu crimes inomináveis – como alguém “terrível e horrivelmente normal”.

Lembrei-me, também, de conversas que tive com companheiros vítimas de horríveis torturas nos porões da Ditadura Militar instaurada no Brasil em 1964. Deles ouvi que, claro, havia torturadores abertamente sádicos e com personalidade deformada, mas que outros davam a impressão de que, depois de estarem ali cometendo aquelas barbaridades, poderiam voltar para casa, beijar os filhos e a esposa como se fossem pais de família amorosos.

Claro que quem tem por “profissão” torturar não será uma pessoa normal. Ou, se algum dia o foi, com o tempo logo se degradaria por causa daquela prática. Mas a impressão de que alguns daqueles torturadores poderiam ser conhecidos num evento social ficou em alguns companheiros. Pelo menos quando eles não estavam no período em que, presos, estavam na tortura. Isso significa que os torturadores eram pessoas normais? Não. Mas significa que alguns deles poderiam dar essa impressão em determinados momentos. Significa que a palavra “monstro” não estava carimbada na testa de cada um deles todo o tempo.

Pois bem... Na Câmara do Rio, onde exerço mandato de vereador, ouvi que o tal Jairinho, que espancou até a morte seu enteado de quatro anos e está tendo o mandato cassado, era tido como uma pessoa afável por seus pares. Dele dizia-se que tratava todos com urbanidade e simpatia. Mas, como se viu, aquela cara jovial e sorridente escondia um monstro miliciano capaz de fazer o que fez.

Penso que essas contradições encobrem algo muito grave. Aliás, muito mais grave do que parece à primeira vista. Pessoas assim, capazes de cometer monstruosidades, são vistas às vezes como normais, até que as monstruosidades aflorem. Se é que elas um dia afloram. Isso – repito – é muito grave e deve nos levar a refletir sobre a sociedade em que vivemos. Como ela permite a assimilação como normal de pessoas assim?

Quem tortura não se mostra como monstro sempre. Como afirmou Hannah Arendt, para quem não conhecia seu passado, no julgamento, Eichmann parecia alguém normal. Pois o mesmo acontecia com alguns torturadores do Regime Militar. E, da mesma forma, o ainda vereador Jairo Sousa Jr, no dia a dia, que muitas vezes dava a seus pares a impressão de ser alguém simpático, cordato.

O ser humano é peculiar. É a única espécie na face da Terra capaz de torturar seu semelhante. É capaz dos gestos mais nobres e carinhosos, como sorrir e acariciar alguém, e dos mais ignóbeis e repulsivos.

O mundo em que vivemos pode ter em seu seio, e ver como normais, pessoas assim. Mais do que um atenuante para estas últimas, isso deve ser motivo de reflexão sobre a sociedade.

Tudo isso me veio à cabeça ao ver Bolsonaro posar sorridente para fotos com aquele cartaz repugnante. É como se estivesse festejando os 400 mil mortos pela Covid-19.

Se bem que, no caso dele, me perguntei outra coisa: será que, como acontece com alguns monstros, mesmo que por instantes, ele vai se mostrar minimamente normal?

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.