Para além da figura de escritor, como desta presente coluna, mas igualmente na função de professor de cinema, muitos que chegam às turmas deste que vos escreve tendem a perguntar: mas o que o cinema brasileiro possui de tão especial? O que diferencia o cinema brasileiro do que é realizado no restante do planeta? Pois é possível responder a esta questão de inúmeras formas, inclusive através da influência que exercemos na sétima arte internacional...
Pode não ter sido ainda desta vez que vimos o Brasil ganhar o tão sonhado Oscar, já que nosso exemplar mais badalado dos últimos tempos, “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não conseguiu reprisar o feito de “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund em 2004, que havia sido indicado em quatro categorias principais, como direção, roteiro adaptado, fotografia e edição – mesmo que não tenha sido indicado ao prêmio de filme estrangeiro.
Porém, mesmo assim, a influência de nossa linguagem pode ser vista de inúmeras formas. Não só na indicação ano passado de nosso documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, ou no fato de o próprio ganhador do Oscar de melhor direção e filme, Bong Joon-Ho, de “Parasita”, ter aclamado nosso “Bacurau” quando o assistiu. Tanto que estes dois filmes foram fundidos numa só alcunha por sua importância histórica nesse determinado momento: “BaCuréia” (aludindo a que “Parasita” seria o “Bacurau” da Coréia do Sul).
Vai muito além disso. Nosso cinema social já era renomado mundialmente desde o Cinema Novo, com nomes como Glauber Rocha, Leon Hirszman e Helena Solberg. E, desde então, várias outras pessoas contribuíram imensamente para pavimentar alguns caminhos muito bem delineados de vanguarda na nossa expressão audiovisual perante o resto do mundo, como Eduardo Coutinho e o gênero denominado de docuficção, onde a realidade pode ser redesenhada a partir de uma ficcionalidade entre o que é veraz na vida real e a fabulação disto.
E prova disto é a vitória de “Nomadland” no Oscar 2021 como melhor filme e direção, além da láurea de atuação para Frances McDormand, num registro naturalista de inserção de uma personagem fictícia a modificar e reassimilar a realidade ao seu redor. Um roteiro que muda a cada curva e vai se atualizando com os riscos e alterações da percepção de realidade... (confira debate ao vivo sobre o tema e o filme nesta quinta-feira às 18h30 no YouTube da Academia Internacional de Cinema clicando aqui).
Esta linguagem, como já apontada outrora aqui nesta mesma coluna (confira aqui), poderia ser encontrada em diversos filmes da década de 2010 no Brasil. Seja em “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, ou em “Temporada”, de André Novais, que já reescreviam as situações de acordo com as vivências transbordantes dos encontros possibilitados na tela. Não se trata de documentários, e sim de reordenação das peças da vida no tabuleiro de xadrez conforme elas se aproximam de experiências reais.
E há duas mostras de cinema atualmente em cartaz que podem reforçar estes encontros dos presentes leitores com a filmografia contemporânea do cinema brasileiro, ambas sediadas na plataforma online do Petra Belas Artes à La Carte (clique aqui).
Em primeiro lugar, vamos falar do Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares, de 22 a 30 de abril. Uma compilação de algumas das melhores obras da nossa sétima arte recente, com uma curadoria muito especial de profissionais e pesquisadores do campo, como Kênia Freitas, Janaína Oliveira, Heitor Augusto, Erly Vieira Jr. entre outros. Serão exibidos, ao todo, 75 filmes (43 longas e 28 curtas) e 10 debates exemplificativos de cada seção. A mostra é produzida pela CUP FILMES, e financiado através da Lei de Emergência Cultural Proac Expresso Lab (Lei Aldir Blanc).
Vale ressaltar o olhar da docuficcção por uma das curadorias em especial, por exemplo, como a do Festival Cachoeira Doc, do Recôncavo Baiano, como o cult “A Cidade é uma Só?”, de Adirley Queirós, num misto de linguagem documental com ficcionalização na corrida eleitoral de um anticandidato político, trabalhando ao mesmo tempo como faxineiro em Brasília, e que, cansado de estar “fora” do Plano, lança sua candidatura para deputado distrital por acreditar que a única maneira de estar “dentro” do Plano seria através do funcionalismo público. Outros filmes desta seção documental e engajada podem ser destacados como “Martírio”, de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana (Tita) Almeida, sobre as questões indígenas perante a política brasileira, bem como “Retratos de Identificação” de Anita Leandro, sobre a denúncia real do período de Ditadura Militar e suas prisões e torturas ilegais.
Outros setores da mostra passeiam por todos os tipos de gêneros de cinema, inclusive em recortes como desde o afrofuturismo (“Vaga Carne” de Grace Passô e Ricardo Alves Jr), o recorte LGBTQIA+ (“Meu Nome é Bagdá” de Caru Alves de Souza) e até mesmo no horror psicológico contemporâneo (“As Boas Maneiras” de Juliana Rojas e Marco Dutra), todos renomados no mundo inteiro, acumulando prêmios nos principais Festivais Internacionais (confira a seleção completa clicando aqui).
Por falar em cinema de gênero, como com o afrofuturismo e o horror psicológico, além de um cinema que abrace a diversidade, a segunda dica da coluna de hoje é o 11º Cinefantasy – Festival Internacional de Cinema Fantástico que continua em cartaz com o prazo estendido até o dia 2 de maio também na plataforma online do Petra Belas Artes à La Carte. Há Mostras que vão desde a nova Fantastic Black Power às Mulheres Fantásticas e Fantástica Diversidade, além de muito mais para descobrir na ampla gama do cinema fantástico: distopia, sci-fi, fantasia, terror, thriller, onírico, ensaístico e até mesmo documentários e etc...
Com o recorde de quatro filmes realizados no Nordeste na competição principal de longas-metragens, dois da Bahia e dois do Ceará, demonstrando que a fabulação da realidade é uma chave propícia à reinvenção das várias formas de olhar nossas narrativas de vida na telona, para refletir os tempos conturbados presentes e alcançar alguma cura na catarse artística.
Os longas previamente citados são “Rosa Tirana” de Rogério Sagui, com uma atualização do conto de Alice no País das Maravilhas, porém com autenticidade regionalista e folclore local da cidade do interior de Poções, numa produção completamente independente que ainda contou com nomes de peso como José Dumont no elenco (num dos mais poéticos monólogos de sua carreira) e Elba Ramalho como intérprete da trilha inédita escrita pelo próprio diretor/roteirista. Além deste, outro filme baiano do Recôncavo é “Voltei!”, da prolífica dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, já em seu quarto trabalho em longa-metragem e cada vez mais abraçando no cerne de sua linguagem a magia ancestral como elemento narrativo distópico a sonhar outras realidades que redimensionem o futuro ao se olhar melhor o passado outrora invisibilizado de nosso povo.
Já do Ceará, você poderá conferir a ficção científica “Rodson ou (onde o sol não tem dó)”, de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, que já havia sido destaque também em outro importante Festival Brasileiro, a 24ª Mostra Tiradentes, e objeto desta coluna (confira aqui). Bem como outro exemplar do cinema de gênero, no caso, do nordestern (faroeste do Nordeste), “Como Vivem os Bravos” de Daniell Abrew, atualizando arquétipos de clássicos internacionais desde “Três Homens em Conflito” Sergio Leone (com direito a uma homenagem à famosa cena ao som original de Ennio Morricone, ora adaptada para cá) a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. E isso tudo com personagens diversas em múltiplos pontos de vista, não mais somente aquela velha perspectiva do típico pistoleiro solitário, como também de pistoleiras mulheres, de aliados indígenas e muitos mais, todos contra um antagonista maior (metáfora recorrente e necessária no Brasil atual).
Para quem quiser conferir com exclusividade, haverá debate com os realizadores dos respectivos filmes citados acima, ainda com a presença de dois documentários da competição principal de longas-metragens, como “Narrativas do Pós”, de Graubi Garcia e Jairo Neto e “A Senhora que Morreu no Trailer”, de Alberto Camarero e Alberto de Oliveira, todos presentes no youtube do Cinefantasy a partir de 19h clicando aqui (para quem perder não se preocupe que ficará gravado no mesmo link).
E para quem quiser saber a lista completa de ganhadores do Oscar 2021, clique aqui.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.