Neste último domingo (18), tivemos a entrega online dos prêmios do Festival É Tudo Verdade. Esta que é uma das maiores janelas do cinema documental no Brasil e na América Latina, bem como uma das portas de entrada para a pré-seleção anual do Oscar, já que seus vencedores automaticamente se qualificam como elegíveis para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
O grande prêmio de longa-metragem internacional foi para “Presidente”, de Camilla Nielsson (coprodução entre Dinamarca/EUA/Noruega), sobre a tentativa de estabelecer a democracia após 38 anos de Ditadura no Zimbabué. E a láurea de melhor longa brasileiro foi para “Os Arrependidos”, de Ricardo Calil e Armando Antenore, sobre ex-militantes que foram presos e torturados e depois usados como propaganda por seus inimigos.
Mas é nas menções honrosas desta edição que esta coluna irá se debruçar hoje, especialmente em “Vicenta”, de Darío Doria (Argentina), que ficou em segundo lugar na competição internacional, bem como o filme de abertura do Festival, “Fuga”, de Jonas Poher Rasmussen (Suécia), ambos documentários contados através da linguagem da animação. Mas alguns de vocês, talvez menos familiarizados com esta fusão estética mais contemporânea, poderiam perguntar: como assim um documentário de animação? Se é animação, não seria ficção?
O cinema passou por uma longa busca pela “realidade” e pelo naturalismo nas formas de representar suas histórias... Apesar de haver sim todo um questionamento se haveria a possibilidade de sequer se apreender a realidade num filme, vide reflexões como a de Jean-Louis Comolli em seu famoso texto “Sob o Risco do Real” (clique aqui para ler). Afinal, o que é “real”?
Porém, existem histórias que talvez jamais poderiam ser trazidas ao mundo se não contassem com um pouco de fabulação da realidade, ou mesmo algum artifício que libertasse a obra de suas limitações. Por exemplo, qual o limite ético de um filme? Poderíamos falar sobre uma personagem real se, ao colocá-la na tela grande, talvez estivéssemos a expondo a um grande risco de vida? Ou mesmo risco de ser processada e presa, deportada ou torturada por conta de sua vivência? Especialmente se os seus relatos forem contra todo o poderio de um país ou governo que não lhe representa? Como dar luz a essas produções?
Não é a primeira vez que os documentários usam do recurso da animação. Um exemplo muito lembrado é o longa-metragem “Valsa com Bashir” de Ari Folman (2008), onde o cineasta narrava suas próprias memórias de guerra da invasão do Líbano através de entrevistas com colegas veteranos e de um visual todo feito em desenho animado (que virou até uma graphic novel impressa). Também no Brasil tivemos obras como os laureados curtas “Torre” de Nadia Mangolini e “Guaxuma” de Nara Normandi.
E não só de animação vive o documentário. No ano passado, um dos destaques do É Tudo Verdade foi “Bem-vindo à Chechênia”, de David France, e que chegou até os pré-selecionados ao Oscar 2021 nas categorias de melhor documentário e melhores efeitos especiais. Neste exemplar multipremiado na Berlinale 2020, seu diretor já se utilizava de computação gráfica para alterar o rosto de suas personagens de modo a que não fossem reconhecidas. Isto porque eram perseguidas pelo governo da Chechênia por sua orientação sexual e, se viessem a revelar suas identidades, estas pessoas poderiam ser caçadas e mortas.
Apenas no final do filme, sem querer dar spoiler ou estragar a surpresa do documentário, é que finalmente uma das faces vem a público, retirando a digitalização de cima do seu rosto, e podendo revelar o respiro libertador da verdade numa das maiores catarses arrepiantes dos últimos tempos. O único rosto revelado pode parecer pouco perante a enorme quantidade que ainda é obrigada a ficar anônima, porém é um grande representante do coletivo que pôde se tornar porta-voz por se expor ao perigo.
É uma pena o conservadorismo e xenofobia do Oscar em não conseguir indicar filmes internacionais nas categorias principais, com raras exceções (como “Parasita” em 2020), e perder a chance de nomear tais efeitos especiais usados de forma tão emancipatória numa luta real e mundial – porém a própria Visual Effects Society Awards chegou a indicar o filme, mostrando que talvez às vezes estas inovações consigam sim furar a bolha.
Tanto que a edição deste ano do É Tudo Verdade reprisou a sessão de alguns dos destaques de 2020, como a do grande ganhador da competição internacional, o igualmente vanguardista “Collective”, de Alexander Nanau (Romênia), que este sim foi indicado duplamente ao Oscar, como melhor documentário e também como melhor filme internacional, além de ser o favorito para levar a primeira categoria mencionada (mostrando o cacife do nosso Festival documental em descobrir grandes revelações e ajudar com que se tornam pré-qualificadas e elegíveis à estatueta dourada). Numa crítica sócio-política pungente, tudo começa com o incêndio de uma boate (impossível não lembrarmos o caso da boate Kiss no Brasil), que levou a um escândalo ainda maior de materiais adulterados nos hospitais que atenderam as vítimas do acidente, resultando na derrubada do ministro da Saúde e no pedido popular de Impeachment do próprio presidente da República.
Voltando aos filmes deste ano, a seleção começou com pé direito na brilhante fusão de desenho animado com o relato real de um refugiado do Afeganistão que hoje vive uma vida bem-sucedida na Europa, prestes a casar com seu companheiro de vida, no filme “Fuga”, de Jonas Poher Rasmussen (Dinamarca). Realizado em animação, não apenas a face do protagonista como de vários outros envolvidos na história precisava permanecer incógnita, e para gerar este anonimato, todas as imagens foram produzidas de forma lúdica para reproduzir memórias e segredos difíceis de materializar de outra forma. Apesar disso, o longa-metragem possui sim imagens de arquivo em live action, com cenas de guerra e diásporas bastante dolorosas e verídicas que ocorrem até hoje em vários lugares do mundo. Seja por conflitos armados ou por perseguições étnicas ou ideológicas, por exemplo.
Mesmo contendo um tom sóbrio, o mais emocionante deste projeto está justamente nas entrelinhas, nos espaços vazios... Os silêncios dos esconderijos e trajetos árduos de migração clandestina dizem muito mais do que qualquer outra forma poderia. E, para a câmera estar nestes espaços, ainda mais no olho do furacão à sombra dos acontecimentos, pois o anonimato e sigilo são cruciais na sobrevivência dos refugiados, a animação acabou sendo uma excelente forma de chegar a cada recôndito com mais autenticidade que qualquer representação ou atuação com artistas que não passaram por aquilo na vida real.
Outra produção desta edição que gerou um forte impacto neste sentido foi “Vicenta”, de Darío Doria (Argentina), uma animação com a técnica de stop motion (bonecos de massinha animados quadro a quadro, como no cult “A Fuga das Galinhas”), para narrar o périplo de uma abnegada e corajosa mãe que vai contra o sistema e o governo para reivindicar o direito à interrupção da gravidez de sua filha que possui deficiência mental e havia sido violentada pelo tio... Mesmo que as leis pudessem ter brechas que funcionariam a seu favor, é impressionante ver todas as máquinas do Estado demonstrarem uma perseguição feroz ao direito de aborto, como se a vítima na verdade fosse uma criminosa.
Para manter o respeito à privacidade da jovem, acompanhamos apenas o ponto de vista da mãe que dá título ao filme, todo relatado por uma narradora em off, na terceira pessoa, que ao mesmo tempo aquiesce e se solidariza por cada reviravolta (na voz de Liliana Herrero). E podem crer, há muitas reviravoltas aqui. Chegando ao nível de responsabilizar o próprio governo da Argentina num tribunal internacional. Além de atravessar vários recortes para além do de gênero, como de classe e territorial, pois a protagonista vive num bairro da periferia de Buenos Aires, onde o acesso à educação e a uma vida digna é bastante dificultado pela ausência do Estado – demonstrando a força com que estes filmes podem chegar como pré-candidatos ao Oscar 2022 de documentário e até de melhor animação, que nem sempre são voltadas apenas exclusivamente para as crianças...
Documentários como estes também podem se servir do cinema fantástico, como exemplares na competição atual do 11º Cinefantasy – Festival Internacional de Cinema Fantástico que está ocorrendo de 16 a 29 de abril, totalmente online, na plataforma do Petra Belas Artes à La Carte (confira aqui). Exemplares como “Morgana” de Isabel Peppard e Josie Hess, sobre uma mulher madura que decide apenas após os cinqüenta anos de idade ingressar no mercado de filmes pornográficos. Ela faz das fantasias e fetiches desta arte uma declaração feminista ao se transformar na persona que quiser, e contará com debate no dia 22 de abril às 21h no YouTube do Cinefantasy na presença da própria personagem principal e suas duas diretoras (mediação por este que vos escreve ao lado da crítica e cineasta Carissa Vieira, confira link pra live clicando aqui às 21h). Você também pode encontrar debates futuros e também os pregressos, com várias participações renomadas, internacionais e tradução simultânea sobre os filmes da competição seguindo o mesmo canal do YouTube do Festival (aqui)
Ou mesmo, dentro da seleção de documentários do Cinefantasy, podemos citar ainda “Narrativas do Pós” de Graubi Garcia e Jairo Neto, um roteiro sobre os tempos pandêmicos que passamos, todo narrado a partir de imagens de filmes de terror e ficção-científica, e colocando nas palavras de diálogos clássicos do gênero todas as verdades que estamos vivenciando na distopia atual – pela qual talvez jamais imaginássemos passar um dia nem em nossos mais ousados sonhos...
Filmes como estes provam que efeitos especiais e fabulações da realidade, bem como linguagens como a computação gráfica, o stop motion e mesmo a animação tradicional podem servir como pontes para alcançar uma realidade ainda mais genuína e até mesmo visceral, muito mais próximas de seus objetos e sujeitos de estudo, do que pela mera representação naturalista na frente de uma câmera que nem tudo vê. Já se foi o tempo em que acreditávamos que uma câmera poderia substituir o que o olho não alcançava, como uma câmera-olho... Mas a imaginação ainda pode ser mais verdadeira do que qualquer mentira que possamos contar a nós mesmos por muitos anos e fazer passar por realidade.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.