Uma pandemia é declarada quando uma doença nova, para qual as pessoas não têm imunidade, se alastra e passa a ser detectada em vários lugares do mundo ao mesmo tempo. Pessoas em qualquer país estão sujeitas à infecção. E é exatamente isso que estamos vivendo há mais de um ano com o coronavírus. A humanidade enfrenta pandemias pelo menos desde 1580. Agora, com a Covid-19, o mundo enfrenta uma nova pandemia mortal. Se contarmos o número de óbitos no Brasil até dezembro de 2020, mais de 189 mil brasileiros perderam a vida em razão do novo coronavírus, superando os 35 mil mortos no país durante a gripe espanhola (que até então era considerada a pandemia mais letal historicamente). Até o último dia de Março de 2021, já batemos mais de 325 mil mortes no país e temos em média 3.117 mortes por dia. Ou seja, em toda a história, nós nunca havíamos vivido uma crise sanitária deste porte e em escala global.
Estamos diante de algo totalmente novo, um momento para o qual infelizmente não nos preparamos. Até os países mais desenvolvidos estão enfrentando dificuldades para gerir os efeitos da pandemia e o caos tornou-se algo frequente. Nessas horas, sentimos a necessidade de uma gestão pública responsável, cheia de empatia e que preze pelos direitos humanos e sociais. Nos países onde esses direitos sociais estão garantidos, os direitos humanos são valorizados e há um sistema de saúde fortalecido, a situação foi melhor controlada. Sem dúvida alguma esta pandemia testou os estados e é evidente quais são os países que tiveram a melhor gestão da crise sanitária e os que não. As notícias e os dados retiraram um véu que muitas vezes cobria a desigualdade. Com a pandemia, estas desigualdades ficaram mais explícitas e os problemas sociais que já estavam presentes se agravaram muito, como mostra a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio que aponta que, em média, os 10% mais ricos perderam apenas 3% da renda com a pandemia, e os 40% mais pobres viram a renda familiar cair mais de 30%. A desigualdade não é visível apenas na economia, mas também na saúde, pois a parcela mais rica da população tem acesso a serviços de saúde privada, enquanto a grande maioria dos brasileiros dependem do serviço público, enfrentando filas e falta de leitos.
Pensando nesta situação, podemos fazer uma analogia com o conto infantil "A roupa nova do rei" do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, publicado em 1837. A história é sobre um bandido disfarçado de alfaiate, que convenceu um rei muito vaidoso de que sabia tecer uma roupa que somente os inteligentes conseguem ver. Ele passou dias fingindo tecer fios invisíveis enquanto recebia o dinheiro do rei e todas as pessoas que passavam pela janela alegavam enxergar o tecido, para não parecerem estúpidas. Ao terminar de tecer, quando mostrou a mesa de trabalho vazia, o rei exclamou: "Que lindas vestes! Fizeste um trabalho magnífico!", embora não visse nada além de uma simples mesa, pois não queria admitir na frente de seus súditos que não tinha a capacidade necessária para ser rei. Os nobres ao redor soltaram falsos suspiros de admiração pelas supostas vestes, nenhum deles querendo que achassem que era incompetente. Com isso, o rei resolveu marcar uma grande parada na cidade para que ele exibisse as vestes especiais. Durante o evento, uma criança, inocente e sincera, gritou " O rei está nu!". O grito foi absorvido por todos, fazendo com que os burburinhos começassem e com isso todos confessaram que não enxergavam a nova roupa do rei. E é isso o que esta pandemia está fazendo conosco, estamos finalmente olhando para todos os países e metaforicamente gritando “O rei está nu!”, ou seja, as desigualdades já não estão mais camufladas ou invisíveis aos nossos olhos. O mundo está vendo as desigualdades de todos os países, pois elas se tornaram mais acirradas e explícitas com a pandemia; e, entre esses países em que as desigualdades tornaram-se ainda mais fortes, está o Brasil.
Diante deste caos em escala global, onde todos os países de alguma forma foram atingidos, e os mais pobres estão sofrendo de uma forma muito mais intensa, a cooperação internacional é fundamental. Um valor que sempre esteve presente nas relações internacionais e na diplomacia. Mais do nunca, esta cooperação é importante, pois podemos prever um grande êxodo pós-pandemia: onde o número de pessoas que irão sair de seus países para tentar uma nova oportunidade em outros lugares irá aumentar, fazendo com que os países recebam mais imigrantes do que antes. Além disso, muitos países pobres estão precisando de ajuda e doações para adquirir vacinas, um recurso que precisa ser melhor distribuído e para isso são necessários mais diálogos entre as nações, com o apoio da ONU e a orientação da OMS, construindo políticas públicas internacionais.
Dito isso, se faz necessário escutarmos as vozes experientes da diplomacia, pessoas que dedicaram suas vidas à promoção do diálogo entre países e a colaborar para uma cultura de paz. E ninguém melhor para falar sobre os valores que regem as relações internacionais e os movimentos migratórios do que Celso Lafer. Ouvi-lo neste momento é uma aula necessária para todos nós.
Ele é um dos ícones da comunidade judaica, da qual faço parte com orgulho (sim, sou uma negra judia e aluna da CIP). Jurista e ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer é formado em Direito na Universidade de São Paulo e tem mestrado e PhD pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. Foi professor titular e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP. Lafer também presidiu a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e, em 1992, foi um dos responsáveis pela organização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (A Rio 92, um marco na política ambientalista). É membro da Academia Brasileira de Letras.
Um homem cavalheiro que cita autores clássicos em conversas banais, fala sempre com um tom de voz agradável e não cansa de compartilhar seus conhecimentos com os demais. Aquele tipo de pessoa que você conversará por horas sem cansar e irá desejar continuar conversando para aprender mais. Costumo dizer que ele é uma instituição e seus ouvintes alunos privilegiados que aprendem com um dos melhores do mundo. Eu jamais deixaria de entrevistá-lo! Com vocês, um dos patronos da diplomacia brasileira: Celso Lafer.
Ana Beatriz Prudente – A mãe do senhor foi uma mulher dedicada à educação e à filantropia, uma mulher inspiradora para minha geração. Como o legado da senhora Betty Lafer influenciou a sua carreira e suas escolhas políticas?
Celso Lafer – A minha mãe Betty Lafer foi normalista e atuou na década de 1930 nas Delegacias de Ensino de Araraquara e Campinas, numa época de renovação da educação e dos seus métodos pedagógicos inspirada no estado de São Paulo pelos ensinamentos da Escola Nova, que teve em Fernando de Azevedo um dos seus próceres.
Devo à minha mãe a importância do compromisso pedagógico que norteou a minha vida de professor. É o que destaquei no meu discurso de posse de professor titular da nossa faculdade de Direito de 7 de agosto de 1989, realçando a importância de atentar constantemente para a qualidade do ensino e para a responsabilidade do professor numa res publica para, sem paternalismos, promover a maioridade dos seres humanos, ampliando o sapere aude da razão e do conhecimento. Mais adiante na sua vida, minha mãe dedicou-se à UNIBES, uma instituição da comunidade judaica inicialmente constituída para criar uma rede de proteção social para cuidar, com alto sentido de solidariedade, dos problemas enfrentados pelos imigrantes judeus que aportaram em São Paulo no início do século XX.
No longo período de atuação da minha mãe, a UNIBES passou a ir além da comunidade judaica e se tornou um paradigma de ação social responsável na cidade de São Paulo ao ocupar-se não só da assistência social stricto sensu, mas também de crianças e de adolescentes, de capacitação profissional e dos cuidados com a terceira idade.
Da atuação de minha mãe na UNIBES, que se estendeu até o seu falecimento, em 2006, e que sempre acompanhei admirando a sua “suave firmeza”, colhi a lição do papel da sociedade civil e de suas instituições no deslinde dos problemas concretos da desigualdade em nosso país e do alcance republicano do “empowerment” da cidadania.
Ana Beatriz Prudente – O Brasil é uma terra historicamente formada por imigrantes, inclusive o senhor vem de uma família judia de imigrantes lituanos. Levando em consideração que políticas de acolhimento a imigrantes fazem parte da essência constitucional do Brasil, uma vez que um dos princípios que rege nossas relações internacionais é a cooperação com outros países, como o senhor vê a política imigratória brasileira do século XX e seu desenvolvimento neste século XXI?
Celso Lafer – Os fluxos migratórios do século XIX e XX foram processos de grande impacto na vida de muitos países. Trouxeram da Europa e também de outras regiões do mundo dezenas de milhões de pessoas para o continente americano, impelidas por dificuldades econômicas e perseguições políticas e atraídas por novas oportunidades de vida. É neste contexto maior que se inserem as múltiplas correntes migratórias que aportaram no Brasil. Em nosso país, a imigração se adensou com a República que a favoreceu com a autonomia dos seus estados-membros, decorrente da Federação implantada pela Constituição de 1891.
A imigração teve um papel fundamental na configuração do Brasil contemporâneo. Washington Luís, como relevante ator político paulista da Primeira República, deu, na década de 1920, destaque a este papel, que tem sido objeto de numerosos estudos e pesquisas. José Bonifácio, o patriarca da Independência, nos seus projetos para a construção do país, valeu-se de uma metáfora metalúrgica. Dizia que um dos desafios do Brasil seria o de criar uma nova liga a partir do metal heterogêneo das várias procedências de sua população. Esta heterogeneidade se intensificou com a imigração. É por isso que o povo brasileiro, na sua pluralidade, como apontou Darcy Ribeiro, tem a característica de povo novo. É um novo mutante, proveniente de várias matrizes que levaram à liga preconizada por José Bonifácio.
A imigração judaica é parte do movimento global, acima mencionado, das migrações que aportaram no Brasil e passaram a compor a liga da metáfora metalúrgica cunhada por José Bonifácio. Entre elas, na sua especificidade, a minha família, originária da comunidade judaica da Lituânia. O patrono inaugural da família Klabin-Lafer no Brasil foi Mauricio Klabin (1861-1923). Em busca de novos horizontes e escapando de perseguições antissemitas estabeleceu-se como um imigrante, sem recursos, em São Paulo na última década do séc. XIX. Com grande tino e muito trabalho, afirmou-se economicamente e foi propiciando a vinda de toda a família da Lituânia para o Brasil, inclusive o seu tio, o meu bisavô Selman Lafer.
Mauricio foi um pioneiro da implantação da indústria brasileira de papel e celulose e um criador das primeiras instituições da comunidade judaica em São Paulo nas décadas de 1910 e 1920. Há uma recente biografia de Mauricio Klabin, de autoria de Roney Cytrynowicz (Narrativa Um, 2019) muito esclarecedora da dinâmica da imigração judaica da Europa Oriental nos seus primórdios.
Mauricio criou o patamar para a atuação das sucessivas gerações da família Klabin-Lafer, muitas das quais se destacaram, num arco do tempo que se estende aos nossos dias, em amplos setores da vida nacional: o empreendedorismo, a indústria, a cultura, a ação social, a política. Disso dá conta o livro de Ronaldo Costa Couto, A saga da família Klabin-Lafer (1ª ed., 2017; 2ª ed. revista e ampliada, 2020).
A minha família, de maneira análoga à de outras, descendentes das grandes correntes imigratórias, logrou uma bem sucedida inserção e incorporação em todos os setores da vida nacional, no contexto do Brasil do século XX no qual os imigrantes puderam usufruir de ampla liberdade religiosa, oportunidades de trabalho e negócios e mobilidade social.
A política imigratória do Brasil no século XX teve abertura, mas também momentos de fechamento. O legado, no entanto, é muito positivo. Contribuiu para a diversidade do Brasil que é um dos ativos da nossa sociedade e da sua criatividade.
A Constituição de 1988 é uma constituição de abertura para o mundo. É o que está consagrado nos princípios que regem as relações internacionais do Brasil contempladas no art. 4º que estão alinhados com os objetivos fundamentais do país, previstos no art. 3º. É o que me leva a sustentar a validade de uma política de acolhimento dos refugiados – dos deslocados do mundo – que darão continuidade à diversidade trazida pela imigração. É o que está em consonância com o princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos e o seu papel na defesa do ser humano num mundo inóspito que também com suas tensões afeta a nossa região.
Ana Beatriz Prudente – O atual presidente Biden, dos EUA, mudou radicalmente a política externa conduzida por seu antecessor. Do que eu pude observar, o Brasil tinha um alinhamento muito forte com o governo Trump. Na sua visão e com seu notório saber em diplomacia, quais são as estratégias que devem ser adotadas pelo Brasil para ter boas relações com o governo Biden e ao mesmo tempo manter fortes relações comerciais com a China?
Celso Lafer – Eu entendo que a tarefa da política externa como uma política pública é a de traduzir necessidade internas em possibilidades externas. Trata-se de uma tarefa que exige apropriada ponderação das necessidades internas e qualificada avaliação das possibilidades externas, tendo em vista as características do cenário internacional. Na sua inserção internacional, o Brasil tem se valido dos recursos de que dispõe como país.
Entre eles, o acumulado capital diplomático de um “soft-power” que nos confere um locus standi próprio na vida internacional. Isto se traduz, inter alia, no pacífico relacionamento com os nossos vizinhos, numa abertura ao relacionamento com os nossos parceiros comerciais e econômicos e numa tradicional capacidade de atuar nas instâncias multilaterais, a partir de uma perspectiva voltada para uma ordem mundial mais pacífica e solidária. É o que qualifiquei como constantes grocianas na lida com conflitos e cooperação ao discutir a trajetória histórica da política externa do nosso país, como uma expressão da identidade internacional do Brasil.
A diplomacia do governo Bolsonaro tem se dedicado a dilapidar o nosso capital diplomático e a promover o nosso isolamento no mundo. Constrói muros por discutíveis e opacas motivações ideológicas. Corrói pontos e pontes de entendimento com os nossos vizinhos e com os nossos parceiros econômicos e comerciais. Com suas posturas em matéria de direitos humanos, destrói uma benévola percepção internacional do nosso país como aberto à diversidade e à pluralidade.
No capítulo meio-ambiente, que é um tema global e de válida sensibilidade universal, estamos sendo identificados como um problema e não como uma solução no encaminhamento da sustentabilidade. É algo que está ao nosso alcance pelo acervo de realizações e de conhecimentos do nosso país e que pode representar significativo potencial no deslinde da ampla pauta do meio ambiente. Deixar isto de lado gera consequências restritivas para as exportações brasileiras e para o investimento em nosso país. Afeta a vida nacional, contribui, e muito, para o nosso isolamento diplomático.
O alinhamento com Trump deu algum respaldo internacional à diplomacia bolsonarista. Este respaldo desapareceu com a eleição de Biden, cuja atuação sinaliza uma postura mais construtiva dos EUA sobre o encaminhamento dos temas de ordem mundial, muito distante do unilateralismo de Trump. A China é um país e uma economia de grande significado para nós. Os EUA também. A nossa posição no mundo, de um país de escala continental localizado na América do Sul e por isso mais distante dos grandes focos das tensões internacionais, nos dá espaço para ter um construtivo e não excludente relacionamento com os dois.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.