Por Gustavo Oliveira* e Giovana Dias Branco**
O conflito na região do Donbass (leste da Ucrânia), em que o governo ucraniano se opõe a separatistas apoiados pela Rússia, voltou a gerar tensões nas últimas semanas. Hostilidades armadas e perdas humanas, bem como movimentações militares na Ucrânia e na Rússia, vêm sendo registradas com crescente intensidade.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de orientação pró-ocidental, alertou as potências ocidentais sobre a possibilidade de uma escalada de violência e aproveitou a situação para reiterar pedidos para que seu país seja incorporado à OTAN – que classificou como “o único caminho para encerrar a guerra no Donbass”.
Do outro lado, Vladimir Putin e lideranças separatistas culparam o governo ucraniano pelas novas tensões. O governo russo, além de negar intenções ofensivas, denunciou o crescimento das atividades de países da OTAN na Ucrânia e no Mar Negro, para onde se espera novo envio de navios de guerra norte-americanos. Em meio a este contexto, os acontecimentos recentes apontaram para o espectro de uma nova escalada do conflito iniciado há sete anos.
Donbass (e Crimeia): o conflito na Ucrânia e as tensões com a Rússia
Rússia e Ucrânia possuem fortes laços culturais e históricos, cujas origens remontam à formação do Estado medieval da Rus’ Kievana, tido como um dos precursores dos Estados russo e ucraniano. Grande parte da Ucrânia também foi, por séculos, parte do Império Russo, e o país só formou suas fronteiras contemporâneas durante o período da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS 1922-1991). Diante deste histórico, são comuns, na Rússia e em partes da Ucrânia, visões como as de Putin, para quem russos e ucranianos, em essência, “são o mesmo povo” – discurso que implica na teoria de que um afastamento da Ucrânia em relação à Rússia não seria “natural”.
A experiência histórica com a Rússia/URSS deixou fortes marcas na Crimeia e no Donbass, que inclui as províncias de Donetsk e Luhansk. Predominantemente russófonas, são regiões conhecidas como redutos de ideologias que valorizam os laços históricos com a Rússia/URSS e que rejeitam uma identidade nacional ucraniana construída em oposição a tais laços.
No início de 2014, protestos populares marcados pelas presenças do nacionalismo ucraniano e de um forte sentimento pró-ocidental (em particular no que diz respeito à entrada na União Europeia) levaram à derrubada do então presidente Viktor Yanukovych (originário da região de Donetsk), que se mostrava benevolente quanto a interesses geopolíticos da Rússia, em especial na área militar. Uma das consequências destes acontecimentos seria exatamente a satisfação dos anseios das parcelas da sociedade ucraniana que vislumbravam um futuro voltado para o Ocidente, afastando-se da histórica zona de influência russa.
A mudança de regime em Kiev gerou grande desconforto em parte da população do leste e do sul da Ucrânia, que a viu como prelúdio para uma era de desconsideração de suas particularidades culturais/linguísticas. Além disso, a queda de Yanukovych mexeu com as sensibilidades geopolíticas da Rússia, que tem buscado por buffer zones (zonas tampão) em relação aos países da OTAN. A Rússia tem se oposto à expansão da aliança militar ocidental ao leste no pós-Guerra Fria, e a deposição de Yanukovych foi vista exatamente como um desafio à “esfera de interesses privilegiados” reivindicada pela Rússia no espaço pós-soviético.
A junção destes fatores fomentou movimentos secessionistas na Ucrânia. Na Crimeia, que já sediava contingentes militares russos (conforme antigos acordos bilaterais com a Ucrânia), um misto de mobilização popular local com intervenção militar russa levou a uma declaração de independência seguida da anexação pela Rússia em março de 2014 (ou “reunificação”, como preferem apoiadores desta decisão).
No Donbass, insurgentes locais e voluntários vindos da Rússia protagonizaram roteiro similar, levando à declaração das Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk (também conhecidas, respectivamente, por seus acrônimos em russo e ucraniano: DNR e LNR). Diferentemente do que ocorreu na Crimeia, contudo, estes eventos suscitaram uma reação antissecessão mais forte por parte do governo ucraniano, levando a um conflito militar que ainda se encontra sem solução política.
A DNR e a LNR consolidaram controle sobre partes das regiões de Donetsk e Luhansk, tornando-se o epicentro do conflito na Ucrânia – que, contudo, encontra-se relativamente estagnado desde a assinatura do segundo Acordo de Minsk (2015). Entretanto, o cessar-fogo era quebrado ocasionalmente por ambos os lados, que se acusavam mutuamente pela elevação das tensões. O conflito no Donbass já deixou aproximadamente 13 mil vítimas fatais (sendo mais de 3 mil civis) e, em conjunto com casos da Crimeia, cerca de 1,6 milhão de deslocados internos na Ucrânia.
Cabe destacar o extenso envolvimento da Rússia com as duas autoproclamadas repúblicas separatistas, mesmo que estas não tenham sido reconhecidas como Estados independentes por Moscou. A Rússia proveu apoio militar aos separatistas em diversas fases da guerra. Além de fornecer apoio econômico, a Rússia também tem exercido grande influência na DNR/LNR por meio de seus chamados “curadores”, isto é, oficiais que supervisionam assuntos políticos, econômicos e militares/de segurança na região. Por fim, uma outra relevante dimensão do envolvimento russo é a chamada “passaportização” das repúblicas. Segundo autoridades russas, mais de 600 mil habitantes da DNR/LNR receberam passaportes russos desde 2019 (cerca de 15% da população total estimada). Ao “criar” novos cidadãos russos, esta política fortaleceu um compromisso que pode ser ativado para justificar uma intervenção em nome da segurança de russos além-fronteira, como têm aludido oficiais russos.
As negociações para uma solução política do conflito no Donbass têm girado essencialmente em torno dos termos pelos quais os territórios da DNR e da LNR (que a Ucrânia considera como “ocupados” pela Rússia) poderiam ser reintegrados ao Estado ucraniano. Para tanto, a DNR e a LNR, apoiadas pela Rússia, demandam extensos direitos de autonomia e modificações em diversas leis da Ucrânia. Contudo, há desencontros com o governo ucraniano quanto à implementação destas medidas. Apesar de novas iniciativas nos últimos meses, com participação das diplomacias alemã e francesa, o impasse permanece, em meio a acusações mútuas de intransigência e desconsideração dos princípios de Minsk.
A escalada de março/abril e seus antecedentes
Os últimos meses foram marcados por uma série de atos que sinalizaram demarcações de posição. Em janeiro, em Donetsk, um evento intitulado “Fórum de Integração Donbass Russo”, que contou com a participação dos líderes da DNR/LNR, celebrou a inserção da região no que tem sido chamado de “Mundo Russo” - uma idealizada comunidade “civilizacional” que remontaria aos processos de formação histórica de Estados na região. De acordo com esta ideologia, tal “civilização”, centrada na Rússia, seria composta por russos étnicos, falantes de russo e/ou, mais amplamente, simpatizantes da cultura russa.
O evento teve a presença da editora-chefe de algumas das principais agências de comunicação filiadas ao governo russo, Margarita Simonian, que rogou: “Rússia, mãe, leve o Donbass para casa!”. Embora o governo russo tenha se distanciado publicamente deste posicionamento, o evento sinalizou uma ameaça velada de maior aproximação à Rússia diante dos impasses do processo de Minsk.
Do lado ucraniano, Zelensky vinha se notabilizando por um giro nacionalista com pretensões de combate à influência russa. Com popularidade desgastada, Zelensky optou por recuperar terreno na política ucraniana fazendo acenos a segmentos nacionalistas e pró-ocidentais, bem como aos EUA – principais aliados da Ucrânia. No início de 2021, o governo Zelensky tomou uma série de controversas medidas contra atores políticos pró-russos na Ucrânia. Dentre elas, destacaram-se as sanções ao deputado Viktor Medvedchuk, principal aliado de Putin no país, e a conhecidos canais televisivos ligados ao político ucraniano (medidas que, por sinal, foram justificadas pelo governo ucraniano com base em alegações de laços econômicos com separatistas). Recentemente, o governo ucraniano também lançou uma “Estratégia de desocupação e reintegração” da Crimeia e uma “Estratégia de Segurança Militar” que reforçou o intuito de aproximação à OTAN.
Um novo “cenário georgiano”?
Os acontecimentos recentes suscitaram paralelos com a Guerra Russo-Georgiana de 2008. Naquela época, o governo pró-ocidental da Geórgia buscava retomar a região separatista da Ossétia do Sul, que tinha como principal aliada a Rússia. O governo russo lançou resposta militar que se desdobrou na derrota da Geórgia e no reconhecimento, por parte de Moscou, das independências da Ossétia do Sul e da Abecásia (outra região separatista da Geórgia), que se consolidaram como satélites russos no Cáucaso.
As similaridades com o caso da Geórgia são evidentes. Na mídia ucraniana, inclusive, circulam notícias de que a DNR estaria considerando uma eventual solicitação de anexação ou reconhecimento de independência pela Rússia. Entretanto, a não ser que o governo ucraniano lance uma forte ameaça existencial à DNR/LNR, uma série de fatores provoca questionamentos sobre se as recentes ações da Rússia constituem, de fato, um prenúncio de intervenção direta.
O elevado custo social e econômico das investidas militares de 2014 serve como alerta em Moscou para o contexto atual. Ações militares na Ucrânia certamente levariam a novas sanções ocidentais contra a Rússia. Ademais, uma possível anexação ou reconhecimento das independências da DNR e da LNR, além de contribuir para fortalecer a antipatia à Rússia na Ucrânia e para a aproximação de Kiev às potências ocidentais, privaria a Rússia de uma potencial fonte de influência de longo prazo na Ucrânia – tal qual seriam os territórios separatistas reintegrados com extensa autonomia e um eleitorado de tendências pró-russas. Mesmo o atual quadro de “conflito congelado” atende a alguns dos principais interesses russos quanto à Ucrânia, como a manutenção do país vizinho fora da OTAN e a preservação da influência de Moscou sobre o “Mundo Russo”.
O governo ucraniano, por sua vez, sabe que a provocação de uma intervenção militar russa poderia causar grandes prejuízos. Para Zelensky, novas perdas poderiam jogar por terra seus esforços de afirmação como um tenaz oponente da Rússia, potencialmente submetendo o presidente a mais críticas dos segmentos da sociedade ucraniana que tem buscado cativar.
Além disso, cabe mencionar as incertezas quanto à postura das potências ocidentais, que têm constantemente declarado apoio à integridade da Ucrânia. Nos EUA, o governo de Joe Biden tem se notabilizado por sinalizações de uma abordagem mais combativa frente à Rússia e a sua influência em regiões vizinhas. Entretanto, é incerta a disposição ocidental para tipos de envolvimento capazes de gerar (ainda) maiores tensões diretas com a Rússia. As evasivas respostas de representantes de países da OTAN diante dos pedidos de admissão feitos por Zelensky são ilustrativas nesse sentido, ao indicarem que a organização não prevê a inclusão da Ucrânia em um futuro próximo - o que pode ser interpretado como um sinal de cautela quanto a novos desafios à Rússia na região tida como histórica zona de influência de Moscou.
Diante destes elementos, os acontecimentos em torno do Donbass têm representado demonstrações de força e de mobilização de redes de aliança frente ao impasse em torno da solução política do conflito. Dito isso, os fatores de moderação mencionados acima não significam que a situação não possa sair de controle e se desdobrar em uma nova etapa de guerra de maior intensidade.
*Gustavo Oliveira é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
*Giovana Dias Branco é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisadora do GECI/PUC-SP.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.