Por Victória Perino* e Gustavo Oliveira**
No dia 14/02 a população do Kosovo foi às urnas para eleições parlamentares que, em teoria, devem definir seus rumos políticos nos próximos quatro anos. A eleição resultou numa contundente vitória do partido Autodeterminação (LVV), liderado por Albin Kurti, que alcançou votação de 49,95% - a mais alta obtida por qualquer partido/coalizão nos últimos vinte anos.
Este resultado tem sido retratado como uma verdadeira ruptura, com a chegada ao poder de uma força anti-establishment responsável pela superação da hegemonia de elites tradicionais no Kosovo. Aludindo a esta imagem “revolucionária” e às raízes de Kurti na esquerda, reportagens na mídia internacional falaram na ascensão do “Che Guevara do Kosovo”. O líder do LVV também teve sua candidatura apoiada internacionalmente em um manifesto que colocou o partido na resistência internacional ao neoliberalismo e denunciou as maquinações dos EUA e da elite kosovar-albanesa que acabaram tirando Kurti do posto de primeiro-ministro em 2020. O documento foi assinado por conhecidos intelectuais de esquerda como Slavoj Žižek, Michael Löwy, Marilena Chauí e Vladimir Safatle.
De onde vêm estas visões? E em que medida a vitória de Kurti/LVV pode ser considerada uma ruptura?
Do movimento estudantil ao governo, das ruas ao parlamento: a trajetória de Kurti e do partido Autodeterminação (LVV)
Kurti começou a ganhar notoriedade no Kosovo ainda nos anos 1990 enquanto líder de movimentos estudantis. Na época da Guerra do Kosovo, que opunha separatistas da maioria étnica albanesa da região ao governo central da Sérvia/República Federal da Iugoslávia (gerando uma intervenção militar da OTAN contra esta última em 1999), Kurti também foi ativista na seção política do Exército de Libertação do Kosovo (ELK), que lutava pela independência do Kosovo. Por seu envolvimento no movimento separatista kosovar-albanês, Kurti chegou a ser preso por autoridades sérvias de 1999 a 2001.
Em 2005, seis anos após o fim da guerra, a rede de ativistas da qual participava Kurti desdobrou-se na criação do LVV como um movimento político. Atuando fortemente nas ruas, o LVV caracterizava-se por fortes críticas à missão de administração internacional da ONU no Kosovo (UNMIK), estabelecida após o encerramento do conflito armado em 1999. O LVV considerava o protetorado internacional encabeçado pela UNMIK no Kosovo como um sistema tecnocrático, não democrático e de caráter colonial.
Em 2010, dois anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, que contou com o endosso dos EUA e das principais potências europeias, o LVV se converteu oficialmente em um partido, disputando eleições e conquistando assentos no parlamento. Com posições inclinadas à esquerda em questões econômicas, o partido, além de continuar se notabilizando por críticas a formas de ingerência internacional no Kosovo, tinha um discurso de combate aos elementos neoliberais da economia local e à corrupção considerada crônica na região.
Ao longo deste período, a imagem anti-establishment de Kurti/LVV deveu-se a questões como sua não inserção nos dois principais grupos da elite político-partidária no Kosovo, que têm sido associados à captura de Estado e a um sistema político corrupto e ineficiente: as ex-lideranças do ELK, agrupadas em partidos como o Partido Democrático do Kosovo (PDK) e a Aliança pelo Futuro do Kosovo (AAK); e a Liga Democrática do Kosovo (LDK), partido que hegemonizou o Estado paralelo e o movimento secessionista não violento dos anos 1990. A organização de protestos e performances (como o lançamento de gás lacrimogêneo e spray de pimenta no parlamento) também rendeu ao LVV a pecha de grupo radical e disruptivo.
O nacionalismo albanês tem sido outro aspecto de destaque do LVV. O partido notabilizou-se por defender a possibilidade de união do Kosovo com a Albânia. A postura nacionalista também tem se refletido nos posicionamentos do LVV sobre as relações com a Sérvia. Apesar de o Kosovo, em muitos sentidos, ser de facto um país independente, a Sérvia ainda o considera formalmente sua província, gerando um impasse responsável por manter acesas tensões na região.
Diante deste quadro, Sérvia e Kosovo têm participado, desde 2011, de negociações de normalização de relações mediadas pela União Europeia (UE) e apoiadas pelos EUA. Kurti e o LVV, contudo, têm declarado forte rejeição a concessões à Sérvia neste processo, diferenciando-se, assim, do percebido “entreguismo” dos governos das elites tradicionais. Tal posicionamento fez com que o LVV fosse tradicionalmente visto com indisposição pelas potências ocidentais, atores de crucial relevância na política do Kosovo, o que também contribuiu para visões sobre Kurti como um líder anti-establishment.
A primeira estadia no poder
Após anos de oposição sistemática aos governos do Kosovo, Kurti e o LVV passaram a ser vistos como a principal voz de setores da sociedade insatisfeitos com a corrupção e a deterioração da qualidade de vida na região. Apostando nesta imagem, o LVV venceu eleições parlamentares pela primeira vez em outubro de 2019. Em fevereiro de 2020, Kurti tornou-se primeiro-ministro em uma coalizão protagonizada pelo LVV e o LDK.
O governo de Kurti, contudo, foi de curta duração. Seu calcanhar de Aquiles foi exatamente a questão das negociações com a Sérvia. No poder, Kurti encampou princípios interpretados pelo governo sérvio como obstáculos para as negociações. Isto, por sua vez, fez Kurti entrar em choque com os EUA, que exercem enorme influência na política do Kosovo. O governo de Donald Trump movia esforços para chegar a um acordo entre Kosovo e Sérvia que pudesse ser exibido como um “sucesso” de política externa no contexto eleitoral norte-americano. Apesar da alta aprovação popular de Kurti, pressões da Casa Branca e do establishment político-partidário kosovar-albanês acabaram levando à derrubada formalmente institucional de Kurti poucos meses depois do início de seu governo.
Novamente na oposição, o LVV questionava a legitimidade do novo governo (liderado pelo LDK) e criticava um acordo envolvendo Sérvia e Kosovo que Trump apadrinhou em setembro de 2020. Na sociedade, a insatisfação popular com os partidos mais tradicionais e o senso de injustiça sobre o destino de Kurti contribuíram para elevar ainda mais a popularidade do LVV. No final de 2020, uma reviravolta política no Kosovo daria ao partido uma chance para aproveitar esta conjuntura e retornar ao poder.
A eleição de 2021
Em dezembro de 2020, a Corte Constitucional do Kosovo determinou que o governo liderado pelo LDK havia sido formado irregularmente no parlamento, decisão que abriu caminho para novas eleições. Dessa vez, Kurti e o LVV, reforçados pela aliança com Vjosa Osmani (ex-LDK), a jovem presidente interina do Kosovo, chegaram ainda mais fortes. Paralelamente, os concorrentes da elite tradicional chegaram enfraquecidos. Líderes históricos do PDK se ausentaram formalmente da política para lidar com acusações de crimes de guerra e contra a humanidade perante um tribunal especial sediado na Holanda. Já o LDK, com a saída de Osmani, perdeu um importante trunfo político.
A campanha de Kurti centrou-se em aspectos como a justiça social, a criação de empregos e a agenda anticorrupção, sendo especialmente bem-sucedida nos maiores centros urbanos e entre os mais jovens. Embora sem tanto destaque, o nacionalismo albanês também apareceu. O manifesto eleitoral do LVV, por exemplo, falou no reforço da cooperação com a Albânia. Além disso, Kurti declarou abertura à possibilidade de uma unificação Kosovo-Albânia no futuro via referendo.
Ruptura, então?
Do exposto acima, vê-se, portanto, que Kurti tem um histórico ambíguo. Ainda que sua trajetória política seja marcada pela oposição aos setores historicamente dominantes no Kosovo, foram diversas as oportunidades em que Kurti se articulou com setores tradicionais (como a coalizão com o LDK em 2020).
No entanto, caso se confirmem as expectativas de que Kurti se torne primeiro-ministro, é inegável a possibilidade histórica para mudanças no Kosovo, visto que não deve ser necessária uma coalizão incluindo partidos da elite tradicional para se atingir maioria parlamentar e formar um governo – algo inédito nas últimas duas décadas. Deve bastar a Kurti uma coalizão com representantes de minorias étnicas com presença constitucionalmente garantida no parlamento.
Alguns fatores, no entanto, podem obstruir mudanças em certas questões historicamente problemáticas no Kosovo, como as relações entre a maioria albanesa (ao redor de 90% da população) e a comunidade sérvia (estimada em 5%-8%). Mesmo que os últimos anos tenham sido marcados por uma maior participação dos sérvios no sistema político kosovar (reflexo de uma estratégia do governo sérvio para expandir sua influência no Kosovo), a herança do conflito continua a dificultar uma integração mais ampla entre as duas comunidades para além das relações entre suas elites.
É verdade que o discurso de Kurti sobre justiça social, bem-estar econômico e combate à corrupção possui um evidente apelo interétnico que pode contribuir para o fortalecimento de relações e articulações multiétnicas. Contudo, seu nacionalismo albanês, manifestado também em declarações radicalmente diferentes das visões prevalecentes entre os sérvios sobre a guerra, tem o potencial de perpetuar elementos de tensão nas relações com a Sérvia e nas relações sérvio-albanesas no Kosovo.
Finalmente, o desenvolvimento de boas relações com as potências ocidentais também deve ser um fator crucial para viabilizar a governabilidade de Kurti/LVV, embora a alta popularidade demonstrada na eleição de fevereiro fortaleça significativamente estes últimos. Enquanto Kurti tem diminuído a importância do diálogo com a Sérvia em sua agenda política, a UE tem declarado esperar prontidão para as negociações. Similarmente, o embaixador dos EUA em Pristina (capital do Kosovo), com quem Kurti já se encontrou após a eleição, deu a entender que os EUA esperam compromisso com as negociações, além de ter criticado a possibilidade de uma unificação Kosovo-Albânia.
Por ora, Kurti tem sinalizado compromisso com a UE, os EUA e a perspectiva geopolítica destas potências sobre os Bálcãs. Assim, ao contrário de questões de maior caráter doméstico, onde deve concentrar esforços de mudança, Kurti sinaliza que, caso confirmado como primeiro-ministro, não deve romper os fundamentos da orientação externa pró-ocidental do Kosovo.
*Victória Perino é graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS/PUC-SP).
**Gustavo Oliveira é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do GECI/PUC-SP e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
***Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.