Ainda que tenhamos ouvido durante toda a vida dezenas de divagações sobre o "povo brasileiro", que não teria educação, seria malandro e pouco chegado ao trabalho, como o populacho obtuso sempre gostou de resumir o bojo de nossa constituição social, nunca fomos preparados (mesmo com essas bobagens do senso comum) para aceitar a ideia de que as pessoas, em sua maioria, seriam abertamente indiferentes a um genocídio sanitário que deixa entre mil e duas mil mortes diariamente no país há um ano.
É simplesmente inacreditável que estejamos vivenciando o evento mais mortal da História do Brasil e que uma parcela robusta da população (talvez até majoritária) faça graça com a tragédia colossal, arranje desculpas cínicas para piorar o cenário e siga radicalizando em ações e palavras absurdas apenas para ficar em sintonia com um líder político de cariz psicopático, desprezado pela civilização.
O Brasil está arrasado. Destruído. Há uma fenda brutal na sociedade, alimentada por um homem diabólico e doente. Sem dar trégua no momento mais triste de nossa existência como nação, suas ofensas e incitações à violência seguem em frente num país continental, com 210 milhões de habitantes, que hoje está sem leitos de UTI nos hospitais, sem capacidade de atendimento nos prontos-socorros e completamente mergulhado no caos econômico.
Além do morticínio, a miséria é a mise-en-scène do Brasil no qual “Deus está acima de todos”. Um país envenenado pelo ódio e pela gritaria irascível dos seres humanos que encontraram sua razão de viver nas palavras de um homem que irradia maldade, que transpira morte por todos os poros.
É nesse cenário que a indiferença em relação às pilhas de cadáveres se instalou nos setores mais apáticos da sociedade, bem além das hostes irracionais que servem de guarda pretoriana para o déspota insano. O brasileiro comum, o médio mesmo, dá de ombros para 260 mil vidas expiradas. O cotidiano na rua é absolutamente naturalizado. É como se nada estivesse acontecendo.
Lembro que antes da primeira explosão de mortes no Brasil, ainda no primeiro semestre do ano passado, uma matéria veiculada no Fantástico sobre a cidade italiana de Bergamo, encerrada com imagens emocionantes de profissionais de saúde e moradores tentando se recompor após a tragédia do povo lombardo, e com a trilha sonora igualmente emocionante de 'Rinascerò, Rinascerai', de Roby Facchinetti, causou uma comoção por aqui.
Gente postando fotos e vídeos com os olhos inchados e a cara vermelha de tanto chorar. Lindas palavras de condolências. Só que elas só emanam quando o destino são as refinadas terras do Velho Mundo. Aos mortos brasileiros cabem os berros descontrolados de quem acha que a doença está atrapalhando demais as coisas e que, se forem necessárias centenas de milhares de mortos para se manter a "normalidade", que assim seja.
A verdade é que, acostumado ao choro falso com novelas e cinema norte-americano, ou com postagens apelativas nas redes, o brasileiro médio está se lixando para a hecatombe real que leva quase 2 mil vidas por dia no país.
Se tem uma coisa que penso todos os dias é sobre como será conviver com esse barbarismo quando tudo isso acabar. Há tempos já não conseguimos olhar nos olhos desses monstros inclementes. Eles têm a face do horror e marca da besta.
E sobre a besta, interpretem como quiser.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.