Rodrigo Augusto Duarte Amaral * e Victória Perino Rosa *
Em 2021, completam-se 30 anos da Guerra do Golfo, conflito que envolveu uma coalizão militar internacional liderada pelos EUA contra o Iraque de Saddam Hussein, após a invasão e tentativa de anexação do Kuwait pelo governo de Bagdá. O contencioso, em torno do petróleo, tinha como pano de fundo um Iraque economicamente abalado após a guerra Irã-Iraque. O país, de economia fortemente dependente do comércio petrolífero, acusava o Kuwait de ultrapassar os limites estabelecidos pela OPEP para a produção de petróleo, situação que teria levado a uma baixa dos preços dessa mercadoria nos mercados internacionais, trazendo novos obstáculos à recuperação da economia iraquiana. Para além da dimensão econômica, o conflito envolvia a disputa geopolítica pelo acesso ao Golfo Pérsico, que naquele momento encontrava-se bloqueado em razão da guerra entre os dois países vizinhos. É nesse contexto que Saddam Hussein, em 2 de agosto de 1990, ordena a invasão do Kuwait pelas forças iraquianas.
A ação foi recebida com forte condenação internacional e trouxe sanções econômicas imediatas contra o Iraque por membros do Conselho de Segurança da ONU. Na ocasião, pouco tempo depois, surge uma nova Resolução que autorizava um bloqueio naval para fazer cumprir as sanções. É apenas seis meses após o início das disputas, em fevereiro de 1991 que tem início, de fato, os bombardeios, que se concentravam nas cidades iraquianas e foram conduzidos pela maior coalizão internacional desde a 2ª Guerra Mundial.
De muitas maneiras, o conflito é um marco nas relações internacionais. O evento foi um teste importante para a ordem internacional liberal que marcaria o pós-Guerra Fria, em que capitalismo deveria prevalecer. Além disso, naquele momento, as cinco grandes potências, membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, entraram em um consenso a respeito da condução das ações militares. Ainda que chame atenção a aprovação do conflito por parte da URSS, que outrora antagonizava com os Estados Unidos, cabe destacar que o momento do conflito coincidia com um período de grandes transformações, em que a potência não demonstrava condições de fazer frente e projetar poder internacionalmente.
Empolgado com o novo momento, o então presidente dos Estados Unidos, George Bush pai, anunciava o início de uma nova era – “mais livre do terror, mais firme na busca pela justiça, mais segura na busca pela paz”. Uma era em que todas as nações poderiam prosperar e viver em harmonia. Era a retomada do liberal internacionalismo anunciado por Woodrow Wilson logo após a 1ª Guerra Mundial.
No entanto, destacar apenas os propósitos liberais declarados pelas potências, desconsiderando os aspectos políticos e econômicos que os cercam, é equivocado. Naquele momento, o Iraque era uma potência regional relevante, ao lado do Irã e da Arábia Saudita, com uma economia petrolífera forte, mas relativamente fechada e que caminhava no sentido contrário aos paradigmas econômicos liberais. Eventualmente, a anexação do Kuwait representava a possibilidade de enfraquecimento do equilíbrio de poder no Oriente Médio e abria precedente para renovadas ações intervencionistas.
Cabe destacar que o interesse em conter o ímpeto iraquiano não foi exclusivo das cinco grandes potências do Conselho de Segurança. Países como Egito, Arábia Saudita e Síria tiveram marcada participação na coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos, não apenas através do envio de forças, mas também fornecendo suporte financeiro e, eventualmente, concedendo parte de seus territórios para a circulação de tropas e equipamentos para o conflito. A identificação da participação desses países na Guerra do Golfo não apenas contribui para iluminar as movimentações regionais naquele contexto, como também desafia uma percepção corrente a respeito da existência de uma comunidade árabe, unida por laços de solidariedade.
Ainda que o Iraque seja tradicionalmente lembrado pela ocorrência da invasão norte-americana em 2003, a Guerra do Golfo guarda uma forte relação com os processos que tiveram lugar na região na referida década. Isto porque, ao longo da década de 1990, consolida-se de forma cada vez mais evidente a vontade de remoção de Saddam Hussein e do governo Baath à frente do Iraque por parte da administração dos EUA. Em 1998, durante o mandato de Bill Clinton, estes esforços ganharam novos contornos após aprovação do Ato de Libertação do Iraque, em que constava um projeto para um Iraque pós-Saddam, pensado ao lado das elites iraquianas antissaddamistas.
É com a intervenção de 2003, outro marco para as relações internacionais, que o projeto pensado naquele contexto ganha materialidade. Além da invasão do território iraquiano, os EUA removeram Saddam e seus associados, promoveram a reconstrução do Estado, alteraram suas bases políticas em direção a consolidação de uma república federativa democrática e transformaram suas bases econômicas através de um processo de liberalização. A partir deste momento, o que se observa na região é o aumento no fluxo de capital estrangeiro e maiores acessos internacionais ao comércio iraquiano.
Por fim, de um ponto de vista mais amplo, a guerra foi um divisor de águas para os conflitos internacionais, na medida em que é considerada a última guerra entre forças regulares estatais e um dos conflitos mais importantes desde a 2ª Guerra Mundial. A partir da Guerra do Golfo, há uma mudança significativa, tanto em direção a disputas que contam com o envolvimento de atores não-estatais, quanto em termos de definições de ameaças. O terrorismo transnacional torna-se lugar comum nos discursos de segurança. Na doutrina estratégica de segurança internacional dos EUA, por exemplo, constava a necessidade de contenção de atores não-estatais, embora as pretensões declaradas fossem em grande medida a garantia de acesso aos recursos no Oriente Médio e o estabelecimento de novas alianças regionais. Paralelamente, também ganhava força no discurso norte-americano a ameaça dos chamados Estados Párias, países com grande capacidade de desenvolvimento nuclear e armas de destruição em massa, mas não confiáveis no que se refere a manutenção da ordem internacional, na medida em que não se enquadram às normas internacionais – era o caso do Iraque.
Ainda que em 2021 pouco seja dito a respeito da Guerra do Golfo, o episódio contribui para o entendimento de dinâmicas ainda em curso e é fundamental para aqueles que estudam a política internacional.
*Rodrigo Augusto Duarte Amaral é professor no curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Doutorando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação em RI San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUCSP).
*Victória Perino é mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação em RI San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUCSP) e pesquisadora do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS/PUC-SP).
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.