A Ciência Política não é suficiente para um ocidental compreender a URSS. Principalmente quando há uma grande influência norte-americana. É preciso lançar mão da antropologia política, pois é imprescindível a alteridade para libertar-se de alguns preconceitos introduzidos pela ideologia liberal burguesa.
Por isso é importante compreender com Georges Balandier que o poder precisa dramatizar-se para manter sua legitimidade e convencimento. Tanto no período czarista, quanto no pós-1917, o representante do Estado deveria ser “reconhecido em virtude de sua força dramática”. Contudo, devido ao processo histórico, ele “muda de figura". O czar era um companheiro da fortuna, da Providência, já o Partido Comunista aparece mais como um “mestre da ‘ciência’ das forças históricas”.[1]
A partir daí é preciso compreender um outro aspecto que é bastante diferente da perspectiva do modelo burguês de governo. Na URSS, o Partido Comunista era concebido como a vanguarda do futuro. Foi ele quem liderou o proletariado (a classe cujo o futuro pertence) a fazer a revolução. De acordo com pensamento marxista, a Rússia se tornou o país mais adiantado do mundo, já que em sua concepção temporal, o futuro será comunista. Isto porque ela foi o primeiro país que colocou o proletariado no poder e todos os elementos tecnológicos e científicos são produzidos pelos trabalhadores. Era um raciocínio lógico para os soviéticos, que a Rússia se tornaria o país mais desenvolvido do mundo num futuro não tão distante.
Lênin se referia aos estágios da História observando o capitalismo como "o velho" e o socialismo como "o novo inevitável": “O mundo velho do capitalismo que está num estado de confusão... E o novo mundo em ascensão, que ainda é muito fraco, mas que crescerá, pois ele é invencível”.[2]
Mas como isso seria possível já que, segundo o próprio Lênin, a Rússia era um dos países mais economicamente atrasados da Europa? Além disso, como mostra Eric Hobsbawm, “a Rússia sobreviveu à Guerra Civil em ruínas e muito mais atrasada do que sob o czarismo".[3]
Por isso é preciso entender que a Rússia não era tão atrasada assim, como dizia Lênin. De acordo com Perry Anderson, no início do século XX, a Rússia dispunha de um grande complexo industrial. “Muitos dos seus complexos metalúrgicos estavam entre os de maior avanço tecnológico do mundo".[4] Contudo, o czar era o grande investidor. A burguesia era muito fraca e “a nobreza feudal continuava a ser a classe dominante". Foi uma industrialização imposta de cima. “A Revolução Russa não foi feita contra um Estado capitalista. O czarismo que caiu em 1917 era um aparelho feudal".[5]
Mas depois da Revolução, a Rússia deveria se encaixar na teoria marxista de que o socialismo é uma etapa avançada da história da humanidade. Deste modo, houve um grande esforço modernizador.
Os comunistas entendiam que o comunismo era o futuro e, deste modo, todo avanço tecnológico deveria ser incorporado pela URSS. Os tratores da Ford entraram no país comunista com o objetivo de modernizar a produção. “Se Lênin era o Deus russo, observou um repórter de economia norte-americano em 1930, Ford era seu São Pedro".[6]
O progresso era parte da ideologia comunista. Houve um grande culto às máquinas, arquiteturas de cidades e prédios futuristas foram desenhadas e os artistas descreviam um futuro extremamente tecnológico, tanto na literatura quanto nas artes plásticas.
Ser contra a tecnologia, o progresso industrial intenso, era ser contrário ao comunismo. Trotsky, por exemplo, reconheceu o avanço técnico da sociedade comunista liderada por Stalin: “Só a revolução proletária permitiu que um país atrasado obtivesse em menos de vinte anos resultados sem precedentes".[7] Contudo, o opositor do governo de Stalin começou a atacar, não apenas o líder do Partido Comunista, mas a promover sabotagem industrial, prejudicando o progresso. Deste modo, Trotsky acabou sendo apontado como traidor do comunismo, já que interferiu diretamente no progresso histórico. Não era algo pessoal, mas ideológico. Muitos cidadãos soviéticos exigiram a execução de Trotsky.
O discurso sobre o tempo acaba justificando o poder soberano do partido. O Estado, na URSS, era separado do partido, como mostra Susan Buck-Morss. O Estado era só uma forma de pôr em prática o progresso. Tinha uma finalidade técnica, administrativa, somente. A repressão ficava a cargo do partido. Em relação a sabotagem industrial, era dever do partido salvar o Estado deste “crime econômico”.[8]
No “final dos anos 30, a União Soviética tinha se transformado numa economia industrial capaz de produzir aço, máquinas, turbinas, petróleo, tratores, tanques de guerra e aviões a partir de seus próprios recursos".[9] A lógica de uma revolução a partir de cima, como ficou conhecido essa industrialização forçada, era mais fácil num país como a Rússia, no qual o czarismo usava do mesmo método. Era algo que já fazia parte da mentalidade política do russo, algo impossível no modo de pensar estadunidense.
Nos anos 1920, o diretor do Instituto Central do Trabalho, era o poeta Aleksiéi Gástiev, que havia sido metalúrgico em seu exílio na França nos tempos do czar. Por que um poeta? Porque na concepção marxista, o sistema fabril paralisava a imaginação do trabalhador. Foi necessário reformular a relação sensorial entre o humano e a máquina. A industrialização tornou-se parte da utopia do trabalhador soviético. “O trabalho industrial", coloca Buck-Morss, “tornou-se o modelo de disciplina corpórea para produzir o homem novo como um instrumento criativo, fundindo trabalho e dança”.[10]
Aqui o Estado-teatro de que fala o antropólogo Clifford Geertz, ao observar os cerimoniais do Estado de Bali, não é em torno do estadista (no caso de Bali, o rei)[11], mas ao redor da utopia comunista que deveria se enquadrar às exigências históricas.
Marshall Sahlins mostra que “o uso de conceitos convencionais em contextos empíricos sujeita os significados culturais a reavaliações práticas”.[12] Este foi o tratamento que o conceito de trabalho industrial teve na URSS. Ele foi reavaliado para se distanciar do conceito capitalista e se encaixar na utopia comunista. Completa ainda o antropólogo: “As categorias tradicionais, quando levadas a agir sobre um mundo com razões próprias, um mundo que é por si mesmo potencialmente refratário, são transformadas".[13] Sahlins se refere ao relacionamento entre os europeus e os havaianos. Duas realidades distintas. Mas o mesmo procedimento aconteceu quando os conceitos capitalistas adentraram à URSS.
Foi transformando a industrialização numa utopia social, em que Stalin conseguiu tirar a URSS do feudalismo e levá-la à Era Espacial. Não era um trabalho alienado, cujo o fim não seria o trabalho em si, como ganhar dinheiro para alimentar a família. O trabalho industrial tinha como finalidade a industrialização do país.
O escritor de ficção científica Ivan Efremov, descreve uma utopia espacial comunista em sua obra “A Nebulosa de Andrômeda”. No futuro, o mundo se torna comunista e o trabalho é extremamente valorizado: “Depressa os homens compreenderam que o trabalho era uma felicidade, tal como a luta incessante com a natureza, a superação dos obstáculos, a resolução de novas e novas tarefas para o desenvolvimento da ciência e da economia".[14]
Nos anos cinquenta, o crescimento era tão vertiginoso que muitos acreditavam que “o socialismo iria produzir mais que o capitalismo dentro de um futuro previsível; como também acreditava o premiê britânico Harold MacMillan".[15]
Trotsky não presenciou o que a 2ª Guerra Mundial fizera com a URSS, presenteando o país com maior quantidade de mortos. Se ele não tivesse sido assassinado, se surpreenderia mais uma vez com a capacidade de progresso do socialismo. Mesmo depois destas perdas astronômicas no conflito mundial, a URSS nos anos 1950 tornou-se a maior potência espacial do mundo. Em 1957 lança o primeiro satélite de comunicação, o Sputnik. O lançamento foi realizado em outubro, no mesmo mês em que a revolução completava 40 anos.
É lógico que o progresso soviético passou por ampla repressão do Partido Comunista, o que acarretou numa série de mortes. Isso, sem dúvida, é uma tirania imperdoável. Infelizmente, não encontramos nenhum lugar do planeta onde o desenvolvimento econômico e industrial não acarretou em pobreza e morte. Assim como ocorreu na Europa, onde os trabalhadores eram vistos como sub-raças, nos EUA, onde a escravidão e o massacre dos indígenas foram decisivos para transformá-los na potência que são, a URSS também teve o seu período de terror. A questão é que nenhuma organização política conseguiu se desenvolver tão rapidamente quanto os soviéticos. Os capitalistas continuam produzindo miséria, matando civis, explorando e precarizando cada vez mais a mão de obra de bilhões para chegar a lugar nenhum, já que a utopia não existe mais. O futuro, quando não é uma incógnita, é algo obscuro como nos filmes de ficção científica. Vivemos na era da distopia. Os comunistas de hoje, por sua vez, já não matam mais ninguém.
Quando não usamos a antropologia política para compreender certos fenômenos, acabamos por julgar o objeto analisado. Stalin é visto como o verdadeiro demônio, enquanto Thomas Jefferson, que possuía escravos e igualmente ateu[16], é visto como um grande homem. É preciso refletir, condenar as perdas humanas em todos os casos, não somente com o objetivo de atacar um sistema econômico ou outro.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.
[1] BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: EdUnb, 1982, p. 07.
[2] Apud. BUCK-MORSS, Susan. Mundo de sonho é catástrofe: o desaparecimento da utopia de massas na União Soviética e nos Estados Unidos. Florianópolis: Editora da UFSC, 2018, p. 55.
[3] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 369.
[4] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 359
[5] ANDERSON, Perry. Op. Cit., p. 359.
[6] GIUCCI, Guilhermo. A vida cultural do automóvel. Rio de Janeiro, 2004, p. 181.
[7] Apud. LOSURDO, Domenico. Stalin: história crítica de uma lenda negra. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 149.
[8] BUCK-MORSS, Susan. Op. Cit., p. 50.
[9] FERREIRA, Jorge. O socialismo soviético. In: FILHO, D. A.; FERREIRA, J.; ZENHA, C. (orgs.) O século XX: o tempo das crises. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 87.
[10] BUCK-MORSS, Susan. Op. Cit., p. 128.
[11] GEERTZ, Clifford. Negara: um Estado-Teatro no século XIX. Lisboa, Difel, 1980.
[12] SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 180.
[13] Ibidem.
[14] EFREMOV, Ivan. A Nebulosa de Andrômeda. 2 ed. Lisboa. Editorial Caminho, 1979, p. 58.
[15] HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. p. 368.
[16] Sobre o ateísmo de Thomas Jefferson ver: MINOIS, Georges. A Idade de Ouro. São Paulo: Edunesp, 2011, p. 300.