Certa vez conheci um médico em Gênova, na Itália, que retratou um Brasil que eu jamais tinha radiografado. Não daquela forma.
Nascido em Nápoles, Giuseppe era socorrista nos navios da Costa Crociere e estava na capital da Ligúria para assinar uns papéis, já que a sede mundial da companhia marítima fica lá. Ele tinha vindo ao Brasil a trabalho algumas vezes.
Causou-me estranheza um médico hospedado na mesma espelunca que eu havia escolhido como casa na cidade onde teria nascido Cristóvão Colombo. Num fim de tarde, ficamos jogados na calçada do estabelecimento, como dois maltrapilhos, tomando cerveja e batendo papo. Um brasileiro e um napolitano, de chinelos, enquanto os soberbos italianos do norte passavam e nos olhavam como se fôssemos subumanos.
"Eu amo o Brasil, aquilo é uma zona completa... A gente não entende como as coisas dão certo... Quer dizer, as coisas não dão certo..."
Foi tão estranho, porque pela primeira vez alguém de fora dessa maluquice toda havia me dito que, ao contrário do dito popular, que "no final tudo dá certo", nossa história não tinha um final feliz. Giuseppe não o fez por arrogância, ou eurocentrismo.
Na sequência, o médico da Campânia, que tinha plena consciência da esbórnia que é a Itália (o Brasil da Europa), e principalmente de sua cidade natal (dominada pelo crime organizado), disse que isso, no fundo, era uma espécie de charme do Brasil. E completou dizendo que tudo errado, o tempo todo, pode parecer legal para um estrangeiro, mas que para o povo brasileiro deveria ser um inferno.
Tenho certeza que boa parte de quem lê este artigo já não suporta mais essa montanha-russa que só desce. O país que sempre foi problemático e que durante toda sua existência viveu em crise com a própria identidade, agora entrou numa espiral de esculhambação infinita. A sensação clara é de que desta vez não haverá saída.
A fuleragem chegou num patamar que, para narrar o Brasil atual, fica difícil saber por onde começar. É tudo muito confuso, a correnteza de absurdos nos arrasta e a única conclusão possível é de que realmente o Brasil não deu certo.
Num país com 63 milhões de cidadãos abaixo da linha da miséria, sendo 20 milhões deles em situação de miséria extrema, além de 14 milhões de desempregados e 225 mil mortos pela Covid-19, na maior crise econômica, sanitária e social de sua história, o presidente da República foi à abertura do ano legislativo no Congresso e listou como prioridade de seu "governo" a liberação da posse e do porte de armas, a mineração em terras indígenas e o homeschooling.
A deputada que chefiará a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal (se ninguém impedi-la) é uma radical extremista que apoia, participa e organiza atos a favor de um golpe de Estado no Brasil e que pede o fechamento do Congresso Nacional.
Com mais de meia dúzia de vacinas para a Covid-19 finalizadas e eficazes no mundo, o presidente e o ministro da Saúde optaram por meses em não comprar os imunizantes e seguiram receitando um coquetel que mais parece uma simpatia, composto até por remédio de piolho, enquanto os corpos foram se empilhando.
Os caras não mandaram oxigênio para uma capital geograficamente remota, mesmo sabendo que centenas de pessoas estavam morrendo asfixiadas, na mesma semana em que se descobriu um gasto de R$ 1,8 bi com itens de supermercado, em sua maioria supérfluos.
O chefe de Estado manda enfiar leite condensado no rabo dos jornalistas, chama o governador da unidade mais rica da federação de "calcinha apertadinha" e diz que o único líder estrangeiro que enviou ajuda humanitária ao Brasil tem coração grande porque é um gordo.
Mermão, até o Zé Gotinha se negou a cumprimentar o dito cujo num evento oficial. O Zé Gotinha, bicho. Um cara vestido com uma roupa fofa de pelúcia que imita a gota da vacina da poliomielite e que é ídolo da criançada.
Num país marcado por um dos relevos sociais mais acidentados do mundo, com uma história indissociavelmente ligada aos seus 350 anos de escravidão, a opção das pessoas continua sendo a de reverenciar um sujeito que reafirma, cultiva e promove nossas vergonhas. A conjuntura é tão absurda que a gente, na solidão do travesseiro, à noite, pensa e até faz planos para desistir.
No lodaçal, enterrados até o pescoço e fugindo das desgraças cotidianas, boa parte dos brasileiros segue hipnotizada e não abre mão de apoiar uma das figuras mais ordinárias, baixas e repugnantes de que se tem notícia até hoje no mundo político.
O Brasil não tem um pinto pra dar água, mas festeja um idiota. Na nação construída sob a égide da escravidão e do servilismo, opta-se pela miséria. Para o povo forjado na inexistência de educação, escolhe-se a ignorância.
É como se tudo realmente estivesse errado, com um final em que tudo dá errado e as personagens esforçam-se como guerreiros para que tudo dê errado.
Os dias têm sido duros, meus caros. Muito duros.