É uma grande vitória termos podido contar com a Mostra de Cinema de Tiradentes, em sua 24ª edição, especialmente num ano que começa ainda na sombra do anterior. Em 2021 continua a quarentena e estamos no aguardo de que toda a população tenha acesso democrático à vacinação... Portanto, a virtualidade da Mostra num formato online era necessária e esta inovação pela primeira vez em sua história fez com que Tiradentes pudesse ser vista não apenas em todo o Brasil, como no mundo inteiro.
E, diante de uma realidade atual que enfrenta fake news e monopólio da informação nas mídias hegemônicas, o próprio formato online de um festival de cinema, como ferramenta de resistência e reflexão sobre cultura, acabou sendo semeado como linguagem no interior da textura dos próprios filmes. Isso porque eles não foram apenas transmitidos desta maneira virtual, como também versaram bastante sobre a própria estética do momento dentro de seus conteúdos e linguagens.
O quanto a virtualização amplia as janelas de nossos conceitos sobre o que é real. E, mais do que isso, o quanto o “glitch” (erro) no sistema, as bordas, as fissuras e impurezas podem transitar pelas margens do próprio sistema de modo a hackeá-lo, e até mesmo a romper a bolha de dentro para fora. E desde o tema dessa edição aos exemplares e seções da mostra que desenvolveram melhor esse diálogo só reforça isso.
Você já pensou o que seria a estética desse “glitch”? Talvez a primeira imagem associada a estas palavras seja o filme “Matrix”, das irmãs Wachowski (1999), que, por si, foi inspirado na filosofia de Zygmunt Bauman sobre a “Modernidade Líquida”. Na trama, toda a humanidade estava adormecida numa grande piscina de realidade virtual lobotomizante, e apenas abraçando a falha nos algoritmos é que você podia se libertar. Mais do que isso, pois o protagonista Neo (Keanu Reeves) passa a poder transitar por fora dos códigos e até a manipulá-los a bel prazer, como voar, atravessar objetos sólidos e se multiplicar. Personagens que ostentam essa capacidade conseguem trafegar pela própria linguagem do filme, modificando-a, e isso dá a eles uma habilidade metalinguística, que é deter a mise-en-scène em suas mãos.
O tema da edição neste ano em Tiradentes, de certa forma, já abraçava isso. Mas não para filmes de ação, por analogia, como a comparação feita acima. Muito pelo contrário. Esses exemplares do cinema brasileiro estão na vanguarda de modificar o formato em si do filme, estimulando com que ele seja modificado pelos próprios agentes e atores internos (nas palavras de Bruno Latour em “Nunca Fomos Modernos”). Com o título de “Vertentes da Criação”, a mostra evocou tudo isso convidando a discutir: “Os processos de criação, a construção dos personagens, do espaço, da escrita, da montagem. O que se faz com as mãos, os olhos, os corpos e o coração quando se está criando uma imagem? Essa reflexão pode acessar um campo de expressão das experiências particulares do trabalho de criação, um trabalho que não está isolado dos processos mais amplos do mundo (econômicos, técnicos, políticos), mas dele toma parte ativa com mais proximidade ou com uma calculada (e necessária) distância”. E chamou alguns dos profissionais de maior gabarito pra tal, como o cineasta Adirley Queirós e a montadora Cristina Amaral, mediados pela curadora Lila Foster (vide debate gravado aqui).
Alguns dos filmes escolhidos para ilustrar a temática já traziam a questão transmídia, que borrava as linguagens cinematográficas com as da realidade. Há de exemplo a sessão de curtas-metragens com “República”, de Grace Passô, “Uma Noite Sem Lua”, de Castiel Vitorino Brasileiro, e “Filme De Domingo”, de Lincoln Péricles. No primeiro, a atriz e dramaturga que também dirige o filme, Grace Passô, refabula o mundo a partir de um sonho, como se o imaginário pudesse hackear o real e o futuro pudesse ser reconstruído a partir de novas bases. Na metade, o filme se revela filme, e inverte o espelho da câmera, demolindo fronteiras (leia mais aqui). Já o segundo, podemos trazer uma própria citação de Castiel, que também protagoniza e dirige: “Talvez a escolha seja viver a completude do híbrido e não o binarismo da polarização. E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encruzilhada. Eu sou a mensageira que anuncia a transmutação travesti” – o que funde corpo e filme, identidade e narrativa. Por fim, no terceiro, Péricles mistura filme, livro e canal do YouTube, de modo a transformar a interdisciplinaridade em unicidade complementar (leia mais aqui).
E o hibridismo perpassa igualmente os longas-metragens temáticos, como “Pajeú”, de Pedro Diógenes: A protagonista Maristela (Fátima Muniz) começa a ter pesadelos que começam a atrapalhar o seu sono e seu cotidiano, onde uma criatura emerge do riacho homônimo que dá nome ao filme, além de pessoas começarem a desaparecer. O devaneio da protagonista altera o tecido da realidade e se mistura a dados estatísticos sobre o riacho que de fato está desaparecendo do mapa.
Essas angústias que extravasam o documental também estão em “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”, de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito. Ao invés de um riacho que desapareceu na vida real estamos lidando com uma ocupação que apenas deseja o direito de reconhecimento de sua existência e de moradia para inúmeras pessoas. A primeira sequência já diz muito, com um aglomerado de pessoas reivindicando um direito aparentemente simples, porém tão crucial que às vezes damos por garantido: o direito de receber os correios em nossa residência. Um direito que não é dado a muitas ocupações, mesmo quando elas adquirem um CEP. E qual o nome da rua? Rua Che Guevara! O direito de moradia pode ser algo revolucionário de ser filmado, de se reapropriar das ruas com função social e imaginário renovado. Vide as cenas em que ocupam os espaços com caixas de som e preenchem o quarteirão com música, dança e performance.
Mas não para por aí. Outras seções competitivas da mostra iriam beber da mesma fonte, transbordando tais estéticas para filmes diversos. A começar pela Mostra Olhos Livres, onde filmes como “Voltei!”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, mesclam a distopia e a fantasmagoria para fazer um acerto de contas com o Estado e a instituição familiar. No ano de 2030, duas irmãs recebem o telefonema da terceira, já falecida, enquanto a sociedade passa por uma crise de energia com apagões gerais. Esta falência do sistema reinventa formas de fazer cinema, dispensando ferramentas tradicionais. Se um telefonema pode ser uma sessão espírita, uma noite pode mudar o mundo. As sombras da noite podem trazer a clareza da consciência do passado e do futuro juntos (leia mais aqui).
Ao mesmo tempo, mais um exemplar em competição, “Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó)” de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, já demonstrava a ruptura total e intencionalmente esquizofrênica com formas arcaicas de se contar uma história. Seria o equivalente a colocar um filme sobre as carrapetas e remixar a mise-en-scène conhecida por composições mais diversas, fora da base comum. Alguns chamam de estética do lixo, outros de chorume, porém tem menos a ver com reciclagem e mais a ver com usar a própria precariedade como linguagem. Usar os recursos parcos como matéria-prima num liquidificador. Imagens se sobrepõem em colagem, cores, luzes e ruídos que sobrevêm uns sobre os outros. Isso tudo para contar a história de um personagem e seu robô em plenos anos 3000, onde um governo “anarcocrenty” proíbe qualquer manifestação cultural ou artística, e, portanto, a única liberdade é implodir com tudo (leia mais aqui).
Se o filme anterior havia desconstruído as regras do cinema, agora vamos falar de como narrar a História com novas regras, a nos reapropriar dos recursos audiovisuais para uma nova cosmologia, com o ganhador do troféu Carlos Reichenbach da Mostra Olhos Livres, “N?h? yãg m? yõg hãm: essa terra é nossa!”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero – mesmos responsáveis pelo filme também ganhador do mesmo prêmio ano passado, “Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito”. Com mistura de documentário, animação, colagem e fabulação, eles revisam a colonização europeia para mudar o prisma sob o qual costumamos nos reconhecer como brasileiros, dando o devido reconhecimento à nossa origem indígena e os povos originários formadores desta nação.
Por fim, até mesmo a mostra principal deste ano em Tiradentes abraçou a dissonância da realidade nas telas para debater a distorção do que andamos vivendo fora delas. Vide a melhor noite de curtas-metragens com a Seção 3 da Mostra Foco, composta pelas obras mais originais: “Preces Precipitadas De Um Lugar Sagrado Que Não Existe Mais”, de Rafael Luan e Mike Dutra, “Novo Mundo”, de Natara Ney e Gilvan Barreto, e “Abjetas 288”, de Júlia da Costa e Renata Mourão – sendo este último o escolhido pelo júri oficial como grande ganhador.
Não à toa, desde o primeiro citado, o filme de Luan e Dutra, que mergulha no subconsciente histórico para purgar os colonizadores escravocratas, ao segundo, de Natara Ney, que usa da performance para reivindicar as origens africanas de nosso país, temos o substrato que nos levará ao terceiro, de Júlia da Costa e Renata Mourão, merecendo a vitória a representar todos os demais. Nesta obra do Sergipe, acompanhamos duas protagonistas que não deixam nada a desejar a Neo de “Matrix”. Elas quebram o sistema por inteiro, suas vozes se projetam pra além do corpo, e seus corpos transitam entre os cenários como glitchs ou interferências, dissonâncias necessárias para mostrar que os sonhos outrora almejados são podres, e a realidade é nossa para fazermos o que quisermos com ela. Eis como a estética do glitch pode nos despertar de nossa matrix e construir tudo o que quisermos realizar!
Confira a lista completa de ganhadores da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes:
– Melhor curta-metragem pelo Júri Oficial, Mostra Foco: “Abjetas 288”(SE), direção de Júlia da Costa e Renata Mourão.
Troféu Barroco.
Da Ciario/Naymar: R$ 5 mil em locação de equipamentos de iluminação, acessórios e maquinaria.
Do CTAV: Empréstimo de câmera Black Magic por duas semanas
Da Mistika: R$ 6.000,00 (seis mil reais) em serviços de finalização.
Da DOT Cine: 2 (duas) diárias de correção de cor; master DCP para curta até 30 minutos.
– Prêmio Canal Brasil de Curtas: 4 Bilhões de Infinitos (MG), de Marco Antônio Pereira.
Prêmio de R$ 15 mil.
– Prêmio Helena Ignez para destaque feminino: Ana Johann, diretora e roteirista de “A Mesma Parte de um Homem” (PR).
– Melhor longa-metragem pelo Júri Jovem, da Mostra Olhos Livres, Prêmio Carlos Reichenbach: “N?h? yãg m? yõg hãm: essa terra é nossa!”, de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero.
Troféu Barroco;
Da Mistika: R$ 15.000,00 (quinze mil reais) em serviços de finalização.
Da Ciario: R$ 10 mil em locação de equipamentos de iluminação, acessórios e maquinaria da Naymar;
Da Cinecolor: 5 diárias de correção de cor;
Da Dotcine: master DCP para longa de até 120 minutos
Do CTAV: Empréstimo de câmera Black Magic por quatro semanas
– Melhor longa-metragem da Mostra Aurora, pelo Júri Oficial: Açucena (BA), de Isaac Donato.
Troféu Barroco.
Da The End: R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) em serviços de pós-produção (laboratório digital, sync, dailies, conform, correção de cor, animação, composição, 3D e masterização).
Da Ciario: R$ 10 mil em locação de equipamentos de iluminação, acessórios e maquinaria da Naymar;
Da Cinecolor: 5 (cinco) diárias de correção de cor.
Da DOT Cine: master DCP para longa até 120 minutos.