A viúva Cary Scott é uma habitante solitária dos subúrbios no país de Eisenhower. Sua solidão, aos olhos dos filhos, das amigas e dos vizinhos a torna uma figura vulnerável e necessitada de maiores cuidados. Em um dado momento, tão preocupado com a fragilidade e a solidão da mãe, seu filho pode presenteá-la com uma novidade exuberante: uma televisão. “Toda a companhia que você quiser, bem aqui na tela”, diz o vendedor ao instalar o aparelho na sala de Cary, “Drama, comédia... o desfile da vida nas suas mãos”. Cary olha diretamente para o produto e se vê refletida na tela escura.
O que as pessoas que tanto se preocupam com Cary não sabem, no entanto, é que ela não precisa encontrar refúgio em algum outro domínio estético. A viúva é acolhida em seu próprio mundo de cores técnicas, pois já habita a rigorosa visualidade do cinema de Douglas Sirk, em que as figuras estáticas da publicidade da época ganham vida e entram em crise. A possibilidade que Cary contempla ao olhar a tela escura é prosaica e entediante (talvez visualize as imagens em preto e branco, o noticiário e os primeiros e precários programas de faroeste) quando comparada ao mundo ficcional em que vive, e ela faz a sua escolha por ele. Para fora da televisão e para dentro da fantasia.
Cary é uma personagem interpretada por Jane Wyman no filme Tudo o que o céu permite (dir. Sirk, 1955). Ela é uma figura do imaginário que sustenta uma subversiva vontade de vida. Ela age em direção dos seus desejos e das suas sensibilidades: seja pelo modo como veste cada peça de figurino, pela vivência de sua sexualidade ou pela maneira como mergulha com intensidade nas mudanças de humores trazidas pelo aspecto de cada estação. Cary aproveita todo segundo de uma vida ficcional, técnica e artificial.
Tudo o que o céu permite e os outros melodramas de Sirk são formulações relevantes para uma imaginação do que foram os anos 1950 – das estéticas e dos signos que produzem essa identificação de época. É interessante, também, como outros produtos ambientados nessa década acessam esse lugar histórico pelo viés do artifício ou de uma encenação autoconsciente de seus próprios valores ficcionais/midiáticos. Nos EUA, os filmes De volta para o futuro (dir. Robert Zemeckis, 1985) e Longe do paraíso (dir. Todd Haynes, 2002) chegam aos anos 1950 pela via do pastiche. No Brasil, a minissérie Anos dourados (escrita por Gilberto Braga, 1986) reivindica uma reflexão e um desmantelamento da nostalgia. Mesmo no cinema realista japonês, a representação do tempo presente em Bom dia (dir. Yasujirô Ozu, 1959) tem coloração técnica e relata desejos de artifícios: a irrealidade das fofocas de vizinhança e ansiedades de consumo em torno da compra de uma televisão, que nunca vemos ser ligada.
Evidentemente, o que foi produzido visualmente sobre essa época não se restringe a esses específicos imaginários de Tóquio, do Rio de Janeiro e da vida suburbana estadunidense. Ainda assim, percebemos como os maneirismos que atravessam esses exemplos demonstram um gesto reiterado de localizar uma época a partir de suas tecnologias (o technicolor, a economia e o consumo) e de um repertório midiático. E ainda que o mesmo possa ser dito sobre a reimaginação de outras décadas do século passado (os anos 1980, por exemplo), a proximidade com as características tecnológicas e midiáticas dos anos 1950 percebe, dentro delas, rupturas e transições que influenciam não apenas o modo como ela vai ser representada futuramente (nesse “após” histórico que dirige o seu olhar para trás, à distância), mas, crucialmente, como ela vai representar a si mesma.
O uso, que passa a ser, então, disseminado, das cores técnicas no cinema e o circuito inaugural de narrativas televisivas sugerem novas e transformadoras maneiras para uma época apresentar a si mesma nesses meios midiáticos. Logo, a série de TV Papai sabe tudo (1954-1960), um empreendimento narrativo sobre o presente que só faz sentido dentro das circunstâncias da televisão (imagino que as pequenas desventuras ordinárias e pouco imaginativas de uma família nuclear não se constituiria como um material para o cinema), insere-se num arquivo que passa a informar sobre as formas de vida, ansiedades e valores de um lugar e uma época; informa, sim, falsamente, mas essa falsidade se dá por uma possibilidade narrativa que é então inaugurada e que permite novas articulações do ficcional e novas maneiras de se interagir com essas ficções.
Essas considerações me conduzem diretamente para o mais recente lançamento do chamado Universo Cinematográfico da Marvel, a minissérie WandaVision (2021), disponível na Disney+. Baseada nas histórias em quadrinhos da editora, a minissérie foca inicialmente nas dinâmicas conjugais de Wanda (Elizabeth Olsen) e Vision (Paul Bettany). Os episódios, em geral, se formulam de acordo com estilos identificados com diferentes épocas do gênero televisivo da sitcom (comédia de situação). Essa influência age sobre a cenografia (que funciona como pastiche de séries clássicas), o figurino, o texto (que busca sempre um tipo específico de humor presente em cada período) e outras características da encenação (como a falsa sugestão de uma audiência presente que ri e aplaude durante os episódios).
Em termos de pastiche, o primeiro episódio da minissérie, “Filmed before a live studio audience” (em português, “Filmado diante de uma audiência de estúdio ao vivo”), é o mais radical. Além das características já descritas, o episódio emula a simplicidade da encenação minimizada das primeiras sitcoms. Tematicamente inspirado pelo subgênero das “esposas mágicas” – de que fazem parte clássicos como A feiticeira (1964-1972)e Jeannie é um gênio (1965-1970) –, a forma do episódio se apega a referências dos anos 1950, como Leave it to Beaver (1957-1963) e The Donna Reed Show (1958-1966): a fotografia em preto e branco é chapada, e o cenário não tem nuances, deixando para a interação entre os atores a maior parte do trabalho criativo e cômico.
Mas o que leva uma minissérie da Marvel a esse pastiche? Com a habilidade de modificar e manipular a realidade, Wanda recria a sua própria à forma desse arquivo. Não se trata apenas de localizar a si mesma como uma dona de casa dos anos 1950, quando a vida lhe pareceria mais simples. É preciso criar as condições para esse estilo de vida, o que significa, nesse caso, reproduzir as formas do seu aparecimento. Habitar os anos 1950 e as promessas de felicidade do período – a promessa de vida plena e satisfatória para os que tem condições de se assimilar a um padrão de vida heterossexual (condição para o matrimônio), branco (condição para o aparecimento) e de classe média (condição para o trabalho e consumo) – implica necessariamente em se habitar o arquivo televisivo da época, incluindo uma residência em suas específicas dinâmicas tecnológicas, econômicas e criativas (em outras palavras, midiáticas).
No uso de seu poder, Wanda a princípio não executa nenhum dos truques de magia que a deram o nome de Feiticeira Escarlate. O seu feito é de manipulação de um arquivo. Quando interage com os anos 1950 como um produto televisivo, o lugar autoral de Wanda não é muito diferente daquele de Todd Haynes (cineasta que, em Longe do paraíso, busca uma releitura de Tudo o que o céu permite). A possível diferença é que Haynes tem como propósito editar as normas de aparecimento do período (sempre, insisto, um tempo que só é acessado como existente no arquivo midiático deixado por ele e sobre ele) para incluir nestas reconhecimentos de raça e sexualidade antes ausentes. E Wanda, ao contrário, busca apenas adequar a si mesma e todos aqueles ao seu redor a essas ditas normas que determinam quem entra em cena e como.
O conservadorismo aparente do primeiro episódio de WandaVision – o humor, as relações entre os personagens, os tipos que eles representam, tudo próximo demais do material em que a série se baseia – foi uma das boas surpresas que eu tive com a minissérie. Era esperado, dentro de uma lógica de revisionismo amigável que é bastante reiterada por Hollywood hoje, que Wanda ressignificasse aquele cenário, que confrontasse a misoginia dos textos originais com seu próprio empoderamento. A assimilação completa de Wanda (ou a assimilação que ela exige de si mesma e dos outros como agenciadora desse arquivo) coloca a minissérie e a personagem em um outro lugar nesse jogo intertextual, indo além da mera identificação das referências e refletindo as maneiras como somos amplamente afetados por elas.
Isso não significa que Wanda seja uma militante nostálgica por uma sociedade que nunca existiu (o modo como ela localiza sua criação em valores midiáticos e televisivos, e não históricos, sugere uma grande sagacidade da personagem e da minissérie), mas que a nossa interação com esse arquivo não está limitada a um distanciamento crítico. Pronunciamos nossos desejos e identificamos possibilidades de vida diante desse arquivo, apropriamo-nos dele em nossas performances. Como Wanda e como Cary, aproveitamos o que podemos desses domínios estéticos, mergulhados em suas formas e provocados por suas afetações técnicas e criativas; mas, como Wanda e como Cary, nós também acionamos as crises que provocam as rupturas nesses domínios e expõem as suas fragilidades.
Em WandaVision, chama-me atenção como a única personagem negra da série nesses primeiros episódios é aquela que não consegue se adequar a esse mundo produzido à tradição formal e política das sitcoms familiares. Monica Rambeau (Teyonah Parris) é lançada para fora dele e quase provoca o seu completo colapso. A maneira como somos afetados por esses arquivos midiáticos são, enfim, tão diversas quanto as possibilidades de seu agenciamento. Pessoalmente, como um pesquisador e aficcionado encantado com todo o arquivo da televisão e do cinema que tem sido recuperado e reorganizado em serviços de streaming como a Disney+ e a Globoplay, vejo em WandaVision um projeto narrativo intrigante e audacioso. Uma rigorosa reflexão sobre as potências, os efeitos e as incorporações desse arquivo, nossas existências através das telas convexas, em preto e branco ou cores técnicas.
*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.