Você sabe quem foi Antônio Carlos Callado? Ah, as novas gerações têm memória curta... Mas não deveriam, afinal, voltamos a enfrentar tempos sombrios no Brasil e no mundo e só quem já passou por isso e resistiu com força e coragem sabe a necessidade de resguardar a máxima de “quem não recorda o passado está fadado a repeti-lo...”.
Pois Antônio, mais reconhecido por seu sobrenome Callado (1917-1997), foi um de nossos maiores jornalistas, romancistas e dramaturgos a contestar a Ditadura Militar, especialmente com seu livro de maior representatividade contra a repressão daquela época: “Quarup”, publicado em 1967. Um título muito potente, que alude a um ritual de homenagem aos mortos, celebrado pelos povos indígenas da região do Xingu, e metáfora de um grito de liberdade em nome de todos os brasileiros que desapareceram ou foram perseguidos e mortos no período.
Sua vida foi repleta de aventuras e reviravoltas, inclusive interligada com a História do mundo, seja na cobertura de conflitos internacionais do naipe da 2º Guerra Mundial e do Vietnã, seja estudando nosso grande Nordeste e o Xingu... Ou mesmo lutando contra a Ditadura Militar através da imprensa, da literatura e do teatro, o que chegou a fazer com que fosse um preso político por duas vezes. Além de ter sido pai de três filhos, dentre eles a atriz Tessy Callado (de filmes como o libelo anárquico “O Rei da Vela”, de José Celso Martinez e Noilton Nunes).
Talvez um dos grandes trunfos do longa-metragem documental “Callado”, de Emilia Silveira (2017), é justamente não ter a pretensão de abarcar tudo isso de forma exaustiva, o que seria impossível ou correria o risco de virar um registro meramente enciclopédico. E muito menos se pretende uma biografia tradicional, pois figura histórica tão multifacetada não mereceria nada menos do que uma proposta à altura de sua linguagem inovadora.
Dentro do próprio filme, há uma cena que descreve a técnica de Callado ao escrever seus livros como a um mosaico, com fragmentos que se encaixam no painel textual... Eis como o filme escolhe se materializar, respeitando e evocando a própria essência do substrato original. Portanto, adotando um tom mais ensaístico e um formato livre, várias técnicas serão reunidas como numa colagem, através da edição inspirada de Vinícius Nascimento.
Boa parte da construção imagética é constituída por material de arquivo em P&B (com raras e espertas inserções de cor), que vai desde algumas preciosidades a outras composições restauradas a partir da precariedade de fontes raras. E é bastante interessante como o filme abraça o ruído e as falhas destes mesmos arquivos como assinatura, ampliando-os pra transformá-los em mise-en-scène. A própria narrativa do filme se torna uma colcha de retalhos muito bem costurada, com sobreposições de quadros e janelas, como os arquivos de Callado distribuídos em camadas entre cartas e letras de próprio cunho, aplicando uma textura à palavra, tanto escrita quanto enunciada. Não é só estética.
Até mesmo o uso de linguagem tida como mais tradicional, há de exemplo as cartelas com frases destacadas na tela ou mesmo a narração em off, é reivindicado de modo a se reapropriar do clássico discurso documental e reocupá-lo. É algo que o longa-metragem demonstra ao desafiar o tempo e o espaço do filme, por exemplo, com a narração em off e a montagem de manchetes de jornal, só que formando um quebra-cabeça. A sucessão de planos evoca a necessidade de se compor na cognição do espectador a imagem ainda incompleta, exigindo a constante vigília, mesmo que se esteja atento apenas ao que está sendo mostrado visualmente ou ao que está sendo narrado no extracampo – desdobrando mais pela combinação.
Em meio a entrevistas recentes, predominantemente orais (deslocando nossa atenção nas imagens, sempre a contextualizar outras informações complementares ao áudio, sem a imagem correspondente), uma questão crucial digna de nota é a fantasmagoria dos áudios daqueles que já se foram (como do próprio Callado) em meio a testemunhos recentes. Isso dá outra potência na revisitação à memória e se acopla no desenho de som, o qual se alterna entre os ruídos e os vazios sob as narrações e a trilha de Leo Gandelman.
Alcançamos, a esta altura, um aproveitamento bastante cênico dos ruídos, dando para fechar os olhos e ‘enxergar’ o som, como o estalar de uma câmera Super 8, ou o de um gravador, ou mesmo os barulhos de explosão e tiros que irrompem nas partes sobre a cobertura jornalística de guerras. Menção honrosa para o belíssimo vácuo poético que a diretora inscreve no momento que fala sobre a perda de um dos filhos do biografado.
Mas não seria um filme sobre esta importante personalidade brasileira, de renome mundial, se os livros pelos quais é tão lembrado não fossem tão protagonistas quanto ele. Da mesma forma que o filme ressalta o quanto o romance aprendeu com o jornal naquela época, vivências da realidade impressas na ficcionalização do real (podendo ser recurso muito útil contra a censura ditatorial), o filme criou uma forma inteligente de trazer isso plasticamente à tona. Destacando frases e trechos importantes da literatura de Callado, as cartelas entre cenas selecionam frases bastante pungentes de seu riscado:
“Todo revolucionário tem o dever de transformar sua morte em vida” – do livro “Bar Don Juan”, 1971.
Sempre concisas e completas, estas sentenças se encerram em si, com pleno sentido e estilo, como frases curtas que podem aludir ao formato sóbrio de escrita com que a juventude está acostumada hoje em dia nas redes sociais, vide o Twitter. E isso não é nenhum artifício superficial, pois adianta e realça o quanto o escritor podia ser impactante não importasse o espaço que lhe fosse destinado, e que não costumava desperdiçar uma palavra sequer. Uma decisão estética do filme extremamente útil para atrair as novas gerações para suas obras-primas imortais.
E por último, mas não menos importante, essas reflexões ganham novos ares ao serem trazidas para uma analogia atual. Afinal, estamos enfrentando um governo mais uma vez a ecoar fantasmas de outrora. E ler estes livros à luz do presente também se fazia urgente. Um gesto muito potente por parte da cineasta que simboliza perfeitamente o escritor no filme.
Foi assim que Emilia Silveira, com toda uma luta de vida e de sua filmografia contra aquele tipo de opressão de outrora, para jamais deixar esquecer ou repetir o passado (como com os filmes “Setenta” de 2013 e “Galeria F” de 2017), teve a boa sacada de convidar pensadores e pesquisadores contemporâneos para debater uma releitura de Callado. Num convite ao senso crítico, seja histórico, seja literário, ela concretiza a prova dos nove com a imortalidade do autor e do jornalista, ainda mais neste período que a imprensa vem sendo tão injustamente atacada.
Para quem quiser conferir o registro de uma live com a diretora e o montador em parceria com a ABC (Associação Brasileira de Cinematografia) e o Cineclube Casas Casadas, na presença dos críticos Ricardo Cota, Maria do Rosário Caetano e deste que vos escreve, basta clicar aqui.
E quem desejar ler uma carta-manifesto da diretora que aborda as torturas e prisões políticas da era ditatorial brasileiro (na qual ela foi uma das pessoas arbitrariamente detidas), leia o seguinte texto a partir da obra “Torre das Donzelas” de Susanna Lira, clicando aqui. Nele, Emilia não deixa de imprimir nas entrelinhas do fraseado o seu processo criativo, de onde podemos recortar e encerrar esta crítica a lhe parafrasear, inclusive sintetizando melhor do que ninguém o próprio filme “Callado”:
“Mas estou aqui para falar de outra coisa. Para falar dos detalhes, do que é particular, pessoal. Para falar dos gestos mínimos que são capazes de nos transportar para além do que está dito. Que nos pegam no contratempo”. – Emilia Silveira, 23 de setembro de 2018.
**Este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.