Inca Garcilaso, o bem-viver indígena e o socialismo atual – Por Yuri Martins-Fontes

Resenha de “La memoria utópica del Inca Garcilaso: comunalismo andino y buen gobierno”, novo livro de Alfredo Gómez-Muller

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Desde meados do século passado, a importância dos saberes indígenas tem se evidenciado por entre os que buscam livrar a concepção socialista daqueles arcaicos (embora tão presentes) dogmas eurocêntricos e positivistas, que bastante contaminaram o pensamento crítico-dialético contemporâneo. Com seu livro “La memoria utópica del Inca Garcilaso: comunalismo andino y buen gobierno” (Buenos Aires: Tinta Limón Ed., 2021), o professor e filósofo Alfredo Gómez-Muller segue este pertinente rumo.

O trabalho é uma profunda pesquisa sobre Inca Garcilaso de la Vega, cronista cuzquenho cujos escritos tiveram ampla repercussão, desde o século XVII, nas novas teorias sociais que surgiam, bem como no pensamento socialista moderno.

Colombiano de Bogotá, radicado na França onde leciona na Universidade de Tours, o professor Alfredo é autor de vários livros no campo da ética e filosofia política, e já há tempos se dedica a desenvolver uma crítica socialista que não somente desvende os mecanismos anti-humanos da modernidade burguesa, mas que se volte de modo efetivo à alteridade e questões subjetivas que devem compor este debate, abarcando em suas reflexões sobre o socialismo atual os cada vez mais imprescindíveis saberes de povos originários – com que a sociedade como um todo tem muito a aprender.

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Nesta sua última obra, estudo de fôlego com mais de 400 páginas, Gómez-Muller investiga em detalhes o pensamento de Inca Garcilaso, cronista nascido na peruana Cuzco, antiga capital do Império Inca, e que tendo ascendências espanhola e inca, viria a se declarar como sendo “índio”.

Na passagem do século XVI para o XVII, Garcilaso elaborou um rico relato histórico no qual descreve diversos aspectos do socialismo agrário dos incas – tema caro a vários marxistas, além de ter interessado ao próprio Marx. Suas crônicas sobre os incas foram desenvolvidas no contexto de grande miséria que acometia a Europa nos tempos da crise social causada pela acumulação primitiva, processo que originou o denominado “progresso capitalista”. Tais escritos chegaram a influenciar variadas correntes do campo socialista: comunistas, anarquistas, reformistas, etc – gerando discussões inclusive em alguns círculos conservadores menos entorpecidos.

A investigação conduzida no recente livro gira em torno da obra “Comentarios Reales”,de autoria de Garcilaso, publicada no começo do século XVII (1609), textos que são interpretados detalhadamente por Alfredo, tendo como cerne o tema da justiça socioeconômica, assunto bastante presente ao longo da instigante crônica.

Sem se ater apenas a questões teóricas suscitadas pela leitura de Garcilaso, o professor busca também conduzir uma interpretação que leve em consideração a vida particular e a realidade social e política em que estava inserido o autor cuzquenho. O resultado é uma narrativa que vai para além da dicotomia cientificista que infelizmente ainda pauta grande parte da ciência moderna (com sua artificial divisão de conhecimentos e crente na possibilidade de se alijar da obra de um autor os percalços de sua própria experiência pessoal).

Deste modo, abordando tanto vivências particulares de Garcilaso, como seu contexto histórico e a letra de sua obra, o professor Alfredo consegue nos fazer imergir em sua argumentação, apresentando-nos inclusive conceitos apenas sugeridos por Garcilaso – que por vezes não estão explícitos no relato. Tendo sido escritos entre os séculos XVI e XVII, quando as restrições à liberdade de se pensar não eram sobretudo econômicas, como hoje, mas atentavam de maneira mais direta contra a vida dos pensadores que se aventuravam a expor suas ideias, certas passagens de Garcilaso estão ocultas, disfarçadas em intenções veladas.

Dividido em seis partes, o livro de Alfredo Gómez-Muller começa explanando a questão particular, mas também social e política, da autoidentificação de Inca Garcilaso: quem se declara como sendo efetivamente um indígena. Logo, passa minuciosamente pelo impacto que suas crônicas tiveram durante séculos, expondo suas reflexões e diversos dados históricos, cuja veracidade é reforçada através de menções a ideias e escritos de autores contemporâneos do cuzquenho.

Dentre as partes do livro que despertam grande interesse ao pensamento crítico-dialético contemporâneo, vale citar a longa discussão desenvolvida sobre o “comunismo agrário” incaico, tema estudado por destacados marxistas já “clássicos” – como Rosa Luxemburgo e José Carlos Mariátegui, dentre outros. De fato, o comunismo inca levantou e continua levantando muitas reflexões sobre conceitos fundamentais ao socialismo contemporâneo – como liberdade, emancipação, justiça social –, chegando a instigar até mesmo políticas concretas vitoriosas (casos da Bolívia e Equador).

Finalizando a obra, há ainda uma exposição e debate sobre o “bom governo” incaico, conceito que, segundo o autor, deve-se muito aos escritos de Garcilaso. Trata-se de uma concepção que ganhou corpo na atualidade, a partir do protagonismo político de organizações indígenas e camponesas, ideia altamente pertinente e que, como poderá constatar o leitor, constitui-se em exímia arma crítica contra a ordem social hegemônica – eurocentrada, miserável, destrutiva – em que ainda (sobre)vivemos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.