Desde que começou esta fase de trabalho em home office e distanciamento social andamos, mais do que nunca, mirando de volta para dentro de nós mesmos... Seria um reflexo da projeção do mundo exterior em nossas angústias mais secretas e privadas? Pois o terror sempre transformou estas indagações em linguagem e exercício de estilo, e temos obras chegando com força a dialogar sobre estas questões.
E não só nos cinemas que reabriram e estão tentando reaquecer o circuito prejudicado pela insegurança da pandemia, mas igualmente a Netflix talvez seja uma das plataformas de streaming que mais anda concentrando produções deste naipe, como a nova minissérie “Missa da Meia-Noite” do diretor Mike Flanagan (2021), que traz uma forte crítica ao mau uso do poder pastoral, especialmente nesses tempos nefastos em que a política contemporânea se apossou da religião como marionete.
Para quem não está associando o nome à pessoa, Mike é o mesmo responsável pela série antológica que conta com “A Maldição da Residência Hill” (2018), baseada no livro homônimo de Shirley Jackson (1959), e “A Maldição da Mansão Bly” (2020), baseada em “A Volta do Parafuso” de Henry James (1898). Sem falar que, recentemente, Flanagan já anunciou que trará em breve outra adaptação de obra clássica, desta vez com “A Queda da Casa Usher” de Edgar Allan Poe (1839).
E a nova minissérie já está ocupando os principais índices de audiência da plataforma. Não à toa, cheia de seus tradicionais easter eggs e simbologias inseridas na narrativa para os fãs hardcore encontrarem pistas e analogias a outras referências, como ao consagrado escritor Stephen King. Ainda assim, não podemos negar que o início de “A Missa da Meia-noite” na Netflix foi um pouco difícil de atravessar, até porque a construção de clima para Mike Flanagan é mais complexa que o normal por fazer um tipo muito específico de terror melancólico, com vibe deprê em slow motion, interessante, mas que retarda a identificação com seu porquê (mostrando a reação sorumbática primeiro, e só depois desvelando as razões). O mau, aqui, não virá de fantasmas, como nas produções anteriores, mas de outros demônios infiltrados na ordem social, que não iremos dar spoiler.
Porém, tirando certa estrutura reiterada de outras obras, principalmente ao usar artistas habituais (Katie Siegel, Henry Thomas, Rahul Kohli etc) em estereótipos similares que adiantam a trama pela previsibilidade de seus arquétipos, de fato há diálogos/monólogos lindos, mesmo que lânguidos, e tudo vale especialmente por culminar num crescendo que leva ao final do episódio 05. Que episódio bonito! Quase todo concentrado apenas em dois cenários: um barco e um salão da igreja – além de contar com um final lírico realmente catártico, que compensa a aparente falta de coragem do final do episódio anterior, que supostamente ousaria tomar uma atitude dramatúrgica drástica e não toma (ainda, contudo tomaria mais adiante).
Engraçado que quase parece o fato de que Flanagan abre mão de episódios de construção intermediária, escondendo/protelando o jogo de propósito, pra culminar em alguns dos melhores episódios da série, maiores que a temporada, como os famosos episódios de outras séries do escopo de “croocked neck lady” (“A Maldição da Residência Hill”), “Altar of the dead” (“A Maldição da Mansão Bly”) e agora com este “gospels” (“Missa da Meia-noite”).
Embora os 2 primeiros episódios sejam osso duro de roer... A partir do 3°, com as regras do jogo já estabelecidas, as ferramentas passam a ser aplicadas com mais precisão. E diálogos muito bem azeitados complementam esta evolução, como o da menina com o ébrio no 3° capítulo, e o papo sobre morte no 4º que foram igualmente muito bem escritos e interpretados pelo elenco. Sem falar que o sermão do 3° episódio, na visceral interpretação do ótimo Hamish Linklater, quase faz pensar que uma missa de fato pode atualizar os dogmas do passado para as necessidades do presente quando se tem um excelente orador, e não a deturpação que andamos vendo na vida real de uma evangelização comercial e industrializada na política brasileira (Nada contra a religião, só uma crítica mesmo ao freqüente mau uso das representações humanas da fé). Hamish, aliás, é a revelação total, pois rouba cada cena em que aparece, e deu um baita impacto em sua carreira com esta atuação diferenciada.
Não deixa de haver certos maneirismos que deixam a linguagem viciada, mesmo sendo inegável que, quando o Mike acerta na linguagem, ele de fato entrega algo com muito valor em certas cenas. A mania de ancorar a trama como uma espinha dorsal familiar até quando não se justifica, mania não só dele, como de roteiros norte-americanos em geral, no caso dele desdobra em subtramas com núcleos dispensáveis, que parecem existir só pra postergar a tensão. E, como ele trabalha com alguns artistas de sempre em suas obras, a diversão de ver quem é quem numa nova trama passa assim que assimilamos que ele os coloca quase nos mesmos arquétipos que contém desenvolvimentos previsíveis, ainda mais se levamos em consideração a estrutura mencionada acima.
Não esvazia a trama, mas acrescenta umas gordurinhas que não ajudam a chegar nos cortes de primeira, pois debaixo da alcatra de fato tem algumas tiras de filet mignon cortadas na ponta de faca bem afiada rsrs. (Descontem os trocadilhos sanguinolentos, mas acabou sendo involuntário ser diegético). Só pra reforçar que nem sempre é ruim dilatar a tensão sem precisar postergá-la, como no desenvolvimento do personagem do ébrio. Todos podíamos prever exatamente todo o arco dele, mas o fato de desenvolver tão bem antes de chegar ao previsível, até dando a ele como ator 2 ótimos diálogos, já fizeram valer chegar no óbvio.
Porque, afinal, também há como se tirar sim um aproveitamento eficiente mesmo após passar o início. E vale à pena esperar pelo final corajoso que costumamos ver muito pouco na dramaturgia em geral, seja no cinema ou na tv.
Mas não é só na Netflix que boas reflexões andam sendo levantadas. Ppara quem já estiver se sentindo mais seguro de regressar às salas de cinema, há uma outra ótima sugestão com o longa-metragem “A Casa Sombria” de David Bruckner (2020), com a multipremiada atriz Rebecca Hall (de “Vicky Cristina Barcelona” de Woody Allen, 2008). E que saudade de um cineminha estávamos todos! E, neste regresso seguro, o presente crítico que vos escreve teve a sala do Espaço Itaú de Cinema só pra si e com checagem eficiente de vacinação na entrada. Isso nos lembra que os cinemas podem ser, sim, seguros - a dificuldade ainda está na falta de educação das pessoas e de espírito coletivo (não adianta nada a sala segura se muitos ainda ficam sem máscara lá dentro, a desrespeitar as regras. Então, tenham solidariedade com os próximos).
E o filme, querem saber como foi? Vamos esperar ainda uma sessão mais vazia de “007 – Sem tempo para Morrer” (2021), apesar da curiosidade. Infelizmente, ainda há muita gente comendo sem máscara e correndo pelas salas todas, inclusive adultos igualmente sem máscara atrás de seus filhos espirrando, e que poderiam igualmente estar seguindo o protocolo mais à risca. Às vezes, dá mais medo do que filme de terror.
Portanto, "A Casa Sombria" de David Bruckner ainda é uma ótima pedida nos circuitos antes que saia de cartaz. Do mesmo diretor envolvido no futuro remake de “Hellraiser”, que recentemente anunciou a atriz Jamie Clayton (de “Sense 8”) como a mítica vilã Pinhead, e vale dizer até que há um pequeno símbolo neste filme de agora parecendo easter egg do próximo trabalho do cineasta (fiquem atentos!).
Deste filme repleto de reviravoltas podemos adiantar, sem spoiler, que, na chave da metáfora de luto com casa mal assombrada, a atriz Rebecca Hall traz uma das melhores construções femininas neste segmento de horror. Uma personagem enlutada, mas extremamente pró-ativa e sarcástica, que encara a trama de frente, ao invés de parecer que caiu de gaiato no navio...
A atriz já teve outrora construções bem interessantes de espiral de loucura, porém, diferente da direção histérica de Antonio Campos (diretor norte-americano filho do brasileiro Lucas Mendes) no filme "Christine", e com muito mais liberdade de cena do que em filmes como "The Gift", aqui Rebecca toma as rédeas como se a câmera fosse sua e acompanhasse sua própria vontade de mergulhar no abismo.
Uma atuação em filmes de fantasma que supera Emily Mortimer no ótimo "Relic" de 2020 (que, como filme, ainda é mais bem resolvido que "A Casa Sombria") e rivaliza com a revelação Wunmi Mosaku em "His House" de 2020 (também atriz de "Lovecraft Country") -- especialmente em termos de uma autonomia da vontade muito grande em agenciar seus desdobramentos como gatilhos narrativos diretos.
A própria disposição da casa-título é bem construída, com foco nos efeitos práticos da primeira metade do filme, dispensando-se as peripécias em CGI descartáveis que chegam na terça parte final. Ainda assim, não seria algo que diminuiria o valor da interpretação de Hall, a não ser por um pequeno deslize de roteiro que nos lembra ter sido um homem a dirigir, e não uma diretora mulher: a inversão desnecessária e equivocada de culpa (inventada nos 45 minutos do segundo tempo a partir de reviravoltas não muito bem fundamentadas).