Tenho lido sobre a grande possibilidade de o Atlético Mineiro ser campeão brasileiro de futebol este ano, meio século depois de vencer este campeonato na sua primeira edição, em 1971, e como contador de causos, fiquei me lembrando do que aconteceu comigo na época.
Era um tempo em que eu viajava bastante de carona, quase sempre pelo Nordeste, e meu destino final era Salvador. Gastava todo o dinheiro que tinha levado antes de chegar lá, e a generosidade dos baianos nunca deixou que faltasse cerveja e hospedagem para mim.
Desta vez, dezembro daquele ano, resolvi inverter as coisas: vou primeiro pra Salvador, com dinheiro, e pago cerveja pra todo mundo que conheço lá, todos os que me receberam, pois queria mostrar que não sou um chupim.
Marquei até um encontro com uma turma de baianos e com paulistas que estavam indo para lá, num boteco da rua Areal de Cima, no dia 24 de dezembro.
Acontece que às vésperas de eu sair de férias, um amigo e colega do curso de Geografia, o Quincas, quis ir pra lá também, e resolvemos viajar juntos.
Mas resolvemos dar uma passada no Rio de Janeiro, onde uma moça nos ofereceu hospedagem. Fomos pro Rio e, mesmo me hospedando na casa dela, gastei uma grana nos botecos. Dali, seguimos para Petrópolis, onde nos hospedamos numa espelunca, mas mesmo assim gastamos mais do que esperávamos. Umas moças da espelunca andaram nos paquerando...
Depois de um dia e uma noite lá, seguimos para a saída da cidade, para pegar uma carona que seguisse até a Rio-Bahia, de onde continuaríamos rumo a Salvador.
Nessa época estava havendo um problema para caroneiros: muitos hippies entraram nessa de viajar assim também. E eles não tomavam banho, depois de uns dias o cheiro deles não era nada agradável. E a maioria dos caminhoneiros, que davam carona para ter com quem conversar, passaram a preferir viajar sozinhos, pois além do odor, os hippies não eram bons de papo com caminhoneiros.
Demorou para a gente conseguir uma carona. O motorista disse que ia seguir só até 10 km dali. Aceitamos mesmo assim. Uns minutos depois, ele disse que não ia ser só essa viagenzinha curta: segundo contou, na última vez que deu carona a um hippie, o cara deixou um cheiro na cabine do caminhão que, mesmo lavando com creolina, demorou dias para sair. Então queria ver se éramos hippies. Como não éramos, estendeu por uns cem quilômetros. Aí ficamos num posto de gasolina tentando continuar, mas foi difícil. Nenhum caminhão que fosse direto para o Nordeste, só trechos curtos.
Com isso, só depois das 10h da noite chegamos a Realeza, um povoado na época, no cruzamento entre a Rio-Bahia e a BH-Vitória. Lá, vimos na televisão que o Atlético tinha conquistado o título de campeão brasileiro de futebol naquele dia.
Propus ao Quincas desviar a nossa viagem para lá: “O Atlético tem a maior torcida de Belo Horizonte, deve ter festa direto nas ruas... E as mineiras de BH, além de bonitas, tinham um sotaque de deixar a gente doido”. E para provocar mais ainda, disse que eram namoradeiras.
Desviamos, e Belo Horizonte estava mesmo uma festa. Torramos um bom dinheiro lá.
Resolvemos continuar a viagem de trem. Havia um todo pomposo que ia de BH a Montes Claros. Saímos de BH no dia 24, às 4h da tarde e chegamos às 8h da manhã em Montes Claros, de onde pegamos outro mais simples às 9h até Monte Azul, onde tivemos que dormir para pegar outro trem de manhã, mais simples ainda, chacoalhando bastante.
Bom, no dia e hora em que devíamos encontrar a turma em Salvador, estávamos saindo de Belo Horizonte. A viagem durou quatro dias no total. Mas não foi só isso: na época, o governo federal oferecia passagens de trem de volta ao Nordeste para famílias que acharam que não deram sorte por aqui e queriam voltar. Mas só dava as passagens, nada mais. Imagine... Se fosse do Rio de Janeiro para lá, eram muitas horas até BH, mais quatro dias até Salvador e de lá uns iriam num ramal rumo a Juazeiro e outros a Sergipe. Sem dinheiro para comer!
No trecho baiano, o trem não tinha hora certa para chegar às cidades, e muitas nem tinham estação. O trem ia apitando uns vinte minutos ou mais antes de chegar e parava num pátio. Nesse espaço de tempo, além de quem esperava a chegada de alguém ou pretendia viajar, quando era do almoço algumas pessoas levavam comida para vender aos passageiros, pois o trem não tinha cozinha.
O modelo de venda era quase sempre o mesmo: um primeiro vendedor oferecia uma concha de feijão por um cruzeiro e emprestava um prato; um outro, em seguida, um tanto de arroz também por um cruzeiro; e finalmente um terceiro vendia um pouco de carne... também por um cruzeiro. Então, com três cruzeiros a gente se alimentava. Mas como comer vendo aquelas famílias sem dinheiro para se alimentar? Pagávamos refeições para algumas delas.
Resultado, cheguei a Salvador com 16 cruzeiros, e o Quincas com 12.
Arrumamos um lugar no sótão de uma pensão para dormir por 5 cruzeiros. A primeira noite estava garantida e me sobraram 11 cruzeiros. Saí à rua e vi um cara vendendo um pandeiro feito com couro de jiboia e comprei por 10 cruzeiros, sobrou um para mim.
Encontrei a turma, mas sem dinheiro nenhum para pagar cerveja pra ninguém, tinha que beber às custas dos amigos de novo. E o resto?
Bom, fomos a uma festa com bebida e comida e eu fiquei fazendo micagens com o pandeiro. Acabamos sendo convidados para nos hospedarmos em uma república, não só o Quincas e eu, mas outros da turma que fomos encontrar também.
Eu sabia que tinha um pouco de dinheiro no Banco Mineiro d’Oeste, mas demorava em média 30 dias para trocarem um cheque de São Paulo em Salvador. Sem problema: os baianos resolveram isso. Uma amiga tinha uma amiga que trabalhava nesse banco. Fui lá, me apresentei a ela, que me apresentou ao gerente como sendo grande amigo dela, cara de confiança, e ele me trocou na hora um cheque de 50 cruzeiros.
Era hora do almoço... levei a moça para almoçar num lugar razoavelmente bom e gastei 25. Sobrou outro tanto desse, que usei para comprar feijão, farinha e cachaça.
Contar as maravilhas que aconteceram lá nos 16 dias em que fiquei em Salvador ocuparia muito espaço aqui. O certo é que fizemos uma festa que durou esse período todo, com gente saindo, gente entrando... No dia seguinte que peguei uma carona para voltar a São Paulo e o Quincas seguiu de trem para Juazeiro, segundo me contaram, a casa caiu. Era um casarão velho, que ficou abalado com tanta gente sambando.
O Elso, um pernambucano com espírito de baiano, era o líder dessa república e trabalhava como câmera na TV Itapoan, ali perto. Todos os dias, parava diante dos escombros da casa e chorava antes de seguir para o trabalho.
Um detalhe: um dia fui beber com ele numa birosca ao lado da TV e havia um homem já com certa idade bebericando. Era um trabalhador “braçal” da TV Itapoan. O Elso me apresentou: “Mouzar, esse aqui é o Batatinha”. Fiquei pasmo. Admirava demais aquele compositor que hoje dá nome a um dos circuitos do carnaval baiano.
Pouco depois chegou um paulista que se tornou meu amigo naquela viagem e também estava hospedado na mesma república, eu sabia que ele adorava as músicas do Batatinha e apresentei: “Marinho, quero lhe apresentar o Batatinha”.
Ele ficou mais pasmo do que eu, sem ação. Um dos caras mais anarquistas que conheci, se apresentou todo formal: estendeu a mão e falou com voz embargada: “Muito prazer! Mário Pires”. Ficamos espantados diante de tanta formalidade e, para quebrar o gelo, falei: “Mas podem chamar ele de Janete. À noite ele se traveste e muda de nome”. Acreditaram e esse passou a ser o apelido dele lá.
O Marinho passou a ir a Bahia todos os anos, morreu em 2015 ou 16, e lá só o chamavam de Janete. Não ligava.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.