“No Brasil não há povo”, disse o biólogo francês Louis Couty, em 1881, ao conhecer nosso país. O escritor Lima Barreto, que nascera naquele ano, sentenciou três décadas depois: “O Brasil não tem povo, tem público”. Ambos se referiam a um problema crônico do Brasil: o déficit democrático. A eleição de Bolsonaro resulta disso.
Só há cultura democrática enraizada com educação e informação. Só há democracia com participação permanente de crescentes parcelas da população e um Estado não oligárquico, poroso às demandas das maiorias.
A agenda política progressista de superação da ditadura empresarial-militar instaurada pelo golpe de 1964 teve a mobilização popular como motor das mudanças institucionais. Sem ela não haveria anistia, eleições diretas para presidente, Constituição de 1988, impeachment de Collor. Na outra ponta, contra Dilma, a direita reaprendeu o caminho da rua - ela que não dava as caras desde as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, há quase 60 anos. Extrema-direita que sempre existiu: nos anos 30 do século passado, a Ação Integralista Brasileira, liderada por Plínio Salgado, filiou rapidamente 1,5 milhão de pessoas. Hoje, o ultraconservadorismo extremista está de novo atuante nas redes, nutrido por fakenews, e nas ruas, como no 7 de setembro.
Face ao desmonte promovido pelo governo bolsonarista, foi animador ver pequenas multidões, com cuidados e máscaras, reagindo: sem essa presença os retrocessos continuarão e a trama golpista não será barrada. As mais de 604 mil famílias enlutadas pela Covid nos interpelam. Os significativos atos de 2 de outubro, porém, revelaram equívocos que devem servir de lições para a esquerda e todos os democratas. Erros que atritaram e estreitaram.
Para superar essas deficiências, é urgente uma revisão de procedimentos. De imediato, trata-se de fazer valer o pactuado nas reuniões preparatórias pelas frentes (Povo Sem Medo e Brasil Popular) e partidos: nenhuma hostilidade entre os participantes, respeito às diferentes expressões. Frente contra o neofascismo é, por natureza, ampla e heterogênea.
Outro ponto fulcral é não misturar os atos com campanha eleitoral. Fazer das passeatas e dos palanques meios de propaganda de candidaturas não unifica e obscurece a razão principal da manifestação. Não amplia e até afasta participantes futuros.
Natural e legítimo que os partidos tenham seus presidenciáveis. Mas o elemento mobilizador do momento é a luta contra o genocídio sanitário (esquadrinhado pela CPI), a fome, a carestia, o desemprego, a devastação ambiental. Contra a “obra” nefasta de Bolsonaro e suas ameaças autocráticas e golpistas. Pelo seu impeachment.
Caso este não aconteça, ano que vem vamos nos preparar para a batalha eleitoral, inclusive com mesa de diálogo sobre uma plataforma mínima que unifique o campo progressista. E também sobre candidaturas. Mas ano que vem não é agora.
É preciso também repensar a velha fórmula do grande palanque, onde as lideranças maiores fazem seus discursos. Desde 2013 – naquelas manifestações difusas e com pautas diversas, algo confusas – há uma ânsia de protagonismo mais horizontal. São sinais “novidadeiros” do tempo, ganhando centralidade nas manifestações, as caminhadas que juntam, em demandas específicas (sem perder o sentido geral), coletivos vários, com suas singularidades, policromias, batuques, criatividade. Com rumo e direção, mas sem disputas hegemonistas. Unidade na diversidade, contra o que não queremos mais. Nunca mais.
Virão novos atos nacionais contra Bolsonaro e pela democracia, hoje ameaçada. No 20 de novembro, de Zumbi dos Palmares, a consciência negra reverberará contra todas as opressões. Saibamos respeitar as diferenças, sem sofreguidão eleitoreira. Com o narcisismo das pequenas diferenças e colocando o carro antes dos bois não conquistaremos o principal: levar às ruas os milhões de atingidos pela tragédia bolsonarista, encorpar a indignação.
Vamos juntos, em frente!
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.