- Ontem (6) foi um dia inusitado nos EUA e que chamou a atenção de todo mundo. No longo processo que envolve os ritos de transição do poder presidencial, os olhos estavam voltados para a sessão conjunta do Congresso norte-americano (Câmara e Senado) que certificaria a vitória de Joe Biden, através da “contagem oficial” dos votos dados pelos cidadãos em todo o país durante a votação que culminou em 3 de novembro passado e sua validação pelo colégio eleitoral de 14 de dezembro. A sessão era presidida pelo vice-presidente do país, Mike Pence, que também preside o Senado, pelas regras constitucionais americanas, e uma moção de objeção aos resultados eleitorais do Arizona havia sido apresentada quando um grupo de pessoas pró-Trump, defensores da tese de que as eleições foram fraudadas, invadiram o Capitólio, edifício onde estão abrigadas as duas casas legislativas, com o intuito de impedir o prosseguimento da sessão. O contexto pré-invasão foi de uma sistemática recusa por parte de Donald Trump em reconhecer sua derrota eleitoral. E esse não reconhecimento não tem sido passivo, mas bastante ativo. Isso ficou demonstrado nos últimos meses com o incitamento a seus apoiadores com a tese de que as eleições foram roubadas e no assédio a autoridades dos Estados, inclusive com áudios divulgados, como relatei aqui nas últimas Notas sobre o telefonema em que Trump pede ao secretário de Estado da Geórgia para que faça uma recontagem e “encontre 11 mil votos”. No mesmo dia (domingo, 3) em que esse áudio foi divulgado pelo Washington Post saiu uma carta de todos os ex-ministros da Defesa ainda vivos dos EUA afirmando não haver bases sólidas para nenhum questionamento quanto aos resultados eleitorais. Era um sinal de que o presidente prosseguiria com as iniciativas de questionamento e fustigando as autoridades. Nesses mesmos dias também aconteceu o 2° turno eleitoral das duas vagas ao Senado na Geórgia, com vitória dos democratas e garantia das duas vagas, impedindo uma maioria republicana no Senado a partir de 2021. Também nos dias anteriores à invasão do Capitólio, aqueles mesmos personagens que apareceram muito nos dias seguintes às eleições de novembro, como o filho do presidente, Trump Jr, e seu advogado, Rudy Giuliani, foram para as ruas e as redes animar os manifestantes e encorajá-los a “agirem em nome da verdade”. Eles agiram de fato e produziram cenas absolutamente bizarras ontem, pelas roupas caricaturadas que usavam, a forca e a cruz que ergueram nos jardins do prédio, e perigosas também, provocando inclusive a morte de uma das invasoras após ser alvejada por tiros das forças de segurança dentro do Capitólio. Os relatos são de um total de quatro mortes, sendo três por algo descrito como “emergência médica”. Uma pergunta que certamente veio à cabeça de todos que acompanham o que acontece nos EUA foi a de como os invasores tiveram tanta facilidade para entrar no prédio e ocupar tantos espaços no seu interior, inclusive sentarem na cadeira do presidente do Senado e vandalizarem o gabinete da presidente da Câmara. É inevitável comparar com o aparato de segurança armado no mesmo edifício na época dos protestos do Black Lives Matter. Parecem dois países distintos, aquele do cenário das manifestações antirracistas e o de ontem com a invasão do capitólio pelos pró-Trump. Some-se a isso a recusa inicial da Defesa Nacional em atender ao chamado da prefeita de Washington para cooperar com a segurança do local no dia de ontem. Por fim, controlada a situação e esvaziado o prédio, os congressistas voltaram com a sessão e Mike Pence fez a declaração oficial de vitória de Biden por 306 votos a 232 de Trump (colégio eleitoral) e convocou a posse do dia 20 de janeiro.
- Após os incidentes, foi iniciado um debate nos EUA sobre o possível uso da 25ª. emenda constitucional. Tal emenda aponta que o vice-presidente do país pode se tornar o presidente interino caso ele a maioria do Gabinete declare que o presidente não possui mais condições de exercer o cargo e dois terços dos votos em cada casa legislativa legitimem a medida. A narrativa subjacente é a de que Trump não estaria em condições adequadas de saúde mental para seguir na presidência até o dia 20 de janeiro, quando deve empossar Biden.
- O dia 6 foi também um dia de recorde em mortes por coronavírus nos EUA. Foram 3865 mortos, o maior número de toda a pandemia. É o quinto dia em três semanas com mais de 3500 mortes. A situação é preocupante especialmente na Califórnia, com destaque para Los Angeles, onde a situação já é considerada um desastre humanitário. As equipes das ambulâncias foram orientadas a não transportarem para os hospitais pessoas com “pequena chance de sobrevivência”, segundo um médico (Jeffrey Smith) disse em entrevista à CNN.
- Nesse mesmo país, os EUA, a justiça do distrito de Kenosha, em Wisconsin, anunciou que o policial que disparou sete vezes pelas costas do homem negro Jacob Blake não será julgado. Segundo o procurador Michael Graveley “nenhum agente da lei de Kenosha neste caso será acusado de nenhum delito baseado nos fatos e nas leis”. Blake foi baleado nas costas e na frente dos filhos em 23 de agosto passado quando entrava em seu carro após uma abordagem policial. Blake ficou paraplégico.
- Enquanto isso, na Venezuela, decorreu de forma tranquila, no dia 5, a posse dos novos membros da Assembleia Nacional eleitos em 6 de dezembro passado. Junto com os novos parlamentares voltaram os quadros de Chávez e Bolívar que haviam sido retirados do edifício pelos anteriores legisladores. O novo período legislativo começa para 277 deputadas e deputados que serão dirigidos por Jorge Rodríguez (ex-ministro da Comunicação). A maior bancada, vinculada ao Gran Polo Patriótico (GPP), será dirigida por Diosdado Cabello. Mas como não poderia faltar, o Grupo de Lima se deu mais uma vez o direito de “não reconhecer a legitimidade ou a legalidade da Assembleia Nacional instalada em 5 de janeiro...”. Segundo os países congregados neste grupo (Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, Paraguai e Peru), continua valendo a Assembleia do Juan Guaidó. Já a União Europeia deixou de reconhecer Guaidó como presidente. Em um comunicado pra lá de estranho, o chefe da política exterior do bloco, Josep Borrell, diz que “lamenta profundamente” que tenha surgido uma nova Assembleia a partir de eleições “não democráticas” e que a UE continuará dialogando com todos os atores políticos e da sociedade civil que se esforçam para restabelecer a democracia na Venezuela, em particular, Guaidó e outros da Assembleia Nacional “cessante” eleitos em 2015. Segundo ele, as eleições de 2015 constituem a “última expressão livre dos venezuelanos em um processo eleitoral”. Só é democrático quando seus aliados vencem?
- E a juíza britânica Vanessa Baraitser, a mesma que negou a extradição de Assange e que é a responsável por seu caso, negou também a liberdade condicional para o ativista fundador do WikiLeaks. Segundo ela, há risco de fuga. Isso significa que Assange continua encarcerado na prisão de Belmarsh enquanto decorre seu processo judicial. A defesa de Assange propunha que ele passasse a prisão domiciliar em Londres, junto a sua esposa e filhos, após pagar uma fiança ou “qualquer outra condição apresentada pelo tribunal”. Mas a juíza não topou e disse que Assange já teria “demonstrado repetidas vezes que é capaz de escapar da justiça, mesmo em estritas condições”. Na prática, ela aceitou o argumento da justiça americana de que o ativista é capaz de “chegar a extremos extraordinários”, nas palavras da procuradora Clair Dobbin.
- Do Golfo Pérsico vem a notícia de que os líderes dos países árabes colocaram um fim ao boicote de mais de três anos ao Catar. Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Egito anunciaram o fim dos bloqueios (terra, mar e ar) ao país que vinham desde 2017. A medida é vista como um passo a mais na ação dos EUA na região no enfrentamento com o Irã. Mesmo de saída, a diplomacia de Trump está envolvida nas negociações. Em 2017, o boicote foi promovido como forma de pressão sobre o país para que deixasse de ter relações com o Irã e a Turquia e para que inviabilizasse o funcionamento da Al Jazeera (potente veículo de comunicação da região) que tem sua sede em Doha.