Phillipe Breton pergunta: “O público tem consciência, hoje, de ser objeto de múltiplas tentativas de manipulação?”. E atenta para as técnicas usadas por políticos demagogos e empresas, que aumentaram nos últimos anos, mas são “amplamente subestimadas”. “Manipular, escreve Breton, consiste em construir uma imagem do real que tenha a aparência de ser o real”.[1]
Uma tática bastante antiga vem sendo resgatada nestes tempos conturbados: as elites que controlam o poder político e o poder midiático buscam manipular a indignação das pessoas para que seja possível retirar o foco da questão econômica direcionando para aspectos morais, ideológicos, etc.
Nesse projeto de poder, a indignação tem que partir das classes médias. É uma indignação ligada ao liberalismo. Um conflito marcado pelo grupo que quer conservar os valores tradicionais, princípios clássicos e, outro, que se coloca em um campo mais progressista.
Por exemplo, os seguidores do presidente Jair Bolsonaro são contra a vacina obrigatória por defenderem a “liberdade”. A mesma justificativa é usada para o porte de armas adicionada a questão da propriedade. Já a indignação dos liberais está relacionada à exposição sem limites da palavra corrupção política, criando um mercado da delação em conluio com poder Judiciário, para apresentar o mercado financeiro como a solução dos problemas.
Estas são as duas formas adotadas pelo liberalismo atual aqui dos trópicos para incitar indignações manipuladas. Estas, por sua vez, nada tem que ver com as manifestações autênticas provenientes das relações sociais de produção, como a indignação dos trabalhadores por aplicativos. Aliás, a indignação manipulada tem como objetivo impedir a indignação da classe trabalhadora.
Na TV aberta, os programas que tratam de cidadania (Balanço Geral, RJ Móvel, etc.) têm a vocação de “fazer pelo povo”, de entrar em contato direto com ele. Já o mesmo tipo de programa, quando direcionado para a classe média, assume a missão de formador de opinião, ideológico, com o propósito de fazer com que essa classe se mova em prol do projeto de Estado defendido pelas grandes corporações, onde a política é demonizada e o mercado endeusado.
Nos dois projetos manipulatórios o Estado é visto como ineficiente, mas, para as camadas populares, os apresentadores, as emissoras, etc., se apresentam como agentes que lutam pelo exercício da cidadania, impedindo que as classes oprimidas lutem por si mesmas, o que poderia prejudicar o sistema atual.
A indignação manipulada voltada para o público de classe média está atrelada às maneiras pelas quais Aristóteles classifica tal sentimento. “Indignamo-nos, vendo os maus beneficiarem da riqueza, do poder e de vantagens análogas”, diz o filósofo grego. Por isso Bolsonaro apresenta a Globo como uma corporação mentirosa que quer governar o país em seu lugar, e a Globo por sua vez o apresenta como um déspota antidemocrático. Ou seja, os dois são apresentados como “maus" que querem se beneficiar do poder.
A dedicação da emissora em acusar políticos, que não a agradam, de corrupção, está ligada na construção da ideia de que esses políticos são “maus" que se beneficiam da riqueza. Bolsonaro, por seu turno, persevera na ideia de que em seu governo não há corrupção justamente para não despertar a indignação da classe média.
Já a indignação dos populares seria, de acordo com Aristóteles, contida porque não tem o objetivo de despertar nessas pessoas a ambição, apenas a subserviência: “as pessoas de caráter servil e desprovidas de ambição não são suscetíveis de se indignarem”.[2]
O que estamos tentando dizer (se ainda não ficou claro) é que há um projeto de poder, promovido pelas elites liberais, que produzem um discurso sobre cidadania para cada classe. Às camadas populares, essas elites e corporações se apresentam como intermediárias entre a indignação (que é anulada) e a realização (exigindo das autoridades que asfaltem ruas, denunciando criminosos, etc.), às camadas médias colocam-se como a condutora, esclarecedora, produtora de ferramentas ideológicas para solucionar a sua indignação (que é alimentada).
A indignação manipulada nos leva à revolta contra as coisas erradas, como vacinas, políticas públicas, etc. e a defender os grupos errados, como a indústria farmacêutica, empregadores e políticos que são contra o povo, como João Doria e o próprio presidente Jair Bolsonaro.
Esse tipo de indignação nos faz criticar de forma errada e, muitas vezes, bizarra, como as declarações de Bolsonaro, de que a vacina pode transformar alguém em jacaré. Não se critica (nem os bolsonaristas muito menos os “moderados") a Pfizer, por exemplo, por ser uma grande corporação que sempre transformou a saúde em lucro, em uma mercadoria negada para aqueles que não podem pagar – uma das coisas mais sujas da economia capitalista.
É um mercado ideológico que disputa o monopólio de definição do que é uma indignação legítima. Bolsonaro e outros setores da direita, que no Brasil é representada de forma mais clara pelas corporações Globo, travam uma luta promovendo uma violência simbólica que tem como objetivo excluir as formas autênticas e revolucionárias de indignação, colocando um véu sobre os elementos econômicos que estruturam todo o conflito.
[1] BRETON, Philippe. A manipulação da palavra. Trad. Maria S. Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1999. p. 9.
[2] ARISTÓTELES, Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. p.146.