Os últimos dias têm sido uma lástima para corações com alguma humanidade. Longe do ufanismo mongo e do verde-amarelismo cafona, ver brasileiros como nós morrendo por asfixia, bem debaixo das barbas de homens públicos investidos de autoridade que debocham, arrasa a saúde psicológica de qualquer um.
Mas o que massacra, na verdade, não são só esses homens públicos investidos de autoridade. O que dói é a fratura da nossa sociedade. Todo mundo conhece alguém que até um par de anos não compreendia absolutamente nada do mundo político, não professava ideologias, e de repente, como se fora picado por uma cobra, abraçou essa vilania doentia que tem a morte como bússola. Esse ódio nojento, as falas que se resumem a matar, eliminar, armar, enfim. Tudo isso, que explodiu como uma tampa de esgoto, tem nome: Fascismo.
Permitam-me um breve relato. Um não, alguns. Pretendo não me estender muito. Se der.
Não sou pesquisador acadêmico, mas já visitei mais de 40 lugares onde ocorreram matanças na Espanha durante a Guerra Civil (1936-1939). Certa vez fui a Badajoz, uma cidade quase média para os padrões da Europa, que fica na Comunidade Autônoma de Extremadura, próxima à fronteira com Portugal.
Fiz questão de ir até lá para conhecer o local onde ocorreu o maior genocídio da Guerra Civil, o Massacre de Badajoz, quando as tropas de Franco fuzilaram mais de 4 mil civis simpatizantes do lado republicano, na antiga Plaza de Toros, que hoje abriga apenas um estranho monumento de metal que projeta umas sombras esquisitas ao entardecer. Não há placas, menções, nada que faça referência ao trágico episódio histórico.
Logo que cheguei, depois de uma breve soneca no ar condicionado, já que o termômetro da farmácia do centro marcava insuportáveis 51°C, fui à oficina de turismo da prefeitura pegar uns mapas e dicas. O local estava quase fechando e a mulher que orientava os escassos visitantes fez um atendimento meio apressado.
Sua pressa só acabou (e sua cara mudou) quando pedi informações sobre o lugar onde ocorrera o Massacre de Badajoz. Surpresa, foi guardando as coisas e evitando falar do assunto, como se fosse um tabu. Disse que ia falando comigo enquanto fechava tudo. Então fomos em direção à porta. Saímos. Ela passou a chave. Já estávamos do lado de fora.
Mais à vontade na rua, numa rápida conversa, a guia extremenha disse que aquele não era um assunto muito falado nos dias de hoje, que mexia em feridas antigas e questões políticas presentes. Notou de que lado eu estava no campo ideológico e fez questão de deixar claro que este era o mesmo campo que o dela.
Depois de algumas orientações sobre o lugar, explanou brevemente sobre o Fascismo. Para ela, que perdeu um tio-avô no morticínio da Guerra Civil e que ouvia histórias de uma família dividida durante décadas, essa gente asquerosa sempre existirá, é um fenômeno geracional. Terminou com uma frase que guardei na mente.
"¡Esos putos fachos siguen ahí!"
("Essas porras desses fascistas continuam por aí!")
Um ou dois anos depois, em Madrid, um sujeito basco, de San Sebastián, que era como um sócio minoritário do pequeno local onde habitualmente me hospedo, batendo papo, fez uma cara de nojo quando me ouviu contar que havia encontrado um pequeno grupo de franquistas, carregando a bandeira espanhola com a Águila de San Juan, numa ridícula manifestação perto da Puerta del Sol.
O cara ficou irritado. Seus familiares haviam militado na resistência basca durante a Guerra Civil.
"¡Escucha... Esos putos fachos siguen ahí!"
O muro do fundo do cemitério de Granada, onde os republicanos eram fuzilados pela matilha golpista, segue crivado de balas até hoje, 80 anos depois. Os espanhóis jamais permitiram que ele fosse reformado. Quem passa por lá pega uma florzinha que nasce nos matos da calçada e coloca num furo. Há várias inscrições feitas com prego, ou com uma chave, na velha parede descascada pelo tempo:
"Fachos: Somos la resistencia"
Outro caso emblemático que mostra como os fascistas se mantêm no casulo, em latência, para eclodirem em ódio na primeira oportunidade, ocorreu em 2017, quando a Catalunha realizou um controverso referendo de independência.
Depois de uma rebelião generalizada, o governo central em Madrid enviou tropas de todo o país para Barcelona, na tentativa estancar a secessão. Quando um comboio de carros militares deixava o quartel em Huelva, no sul do país, com destino à Catalunha, uma pequena multidão de fachos cercou os veículos e entoou um cântico usado pelos franquistas durante a Guerra Civil... "¡A por ellos!"
Algo como "Vamos pegá-los... Atrás deles!".
A sociedade civil da Espanha moderna repudiou em uníssono a atitude nojenta, enquanto um apresentador de tevê chamou aquele canto de guerra fascista de "grito da vergonha". Seu repúdio viralizou.
Essa merdalhada toda que estamos vivendo aqui não é inédita. Nos anos 30, os integralistas assumiram a face rocambolesca e funesta de estandartes do Fascismo. A coisa arrefeceu por umas duas décadas e retornou com tudo nos anos que antecederam o Golpe Militar de 1964, se estendendo pelos anos seguintes de Ditadura. Os idiotas "caçadores de comunistas", lacaios que lambem as botas de milicos lunáticos, estavam lá de novo.
Não seria diferente agora. E revoltar-se com isso (embora eu também me revolte) não adianta nada. Seus olhos brilham com a morte. Têm um tesão descontrolado pela barbárie. Querem que se foda se alguém vai morrer asfixiado, ou sem vacina, desde que possam continuar com a ladainha do proselitismo vagabundo e irracional que abraçaram como se fosse uma religião.
Toda vez que os ânimos se acirrarem e os discursos escalafobéticos aparecerem, a vilania e o gosto pela maldade vão jorrar dessa gente. Os sommeliers do ódio estarão sempre aí.
O Fascismo não morre.
O negócio é resistir. Eles nunca somem de vez, mas também nunca ganham!
Lembrem-se do que aqueles dois espanhóis disseram... Eles vivem numa sociedade que tem larga experiência com essa tralha.
"¡Esos putos fachos siguen ahí!"
E nós seguiremos na resistência. Não há falta de oxigênio nesse mundo que vá asfixiar os homens e as mulheres que lutam, cada um do seu jeito, contra essa malta.