Ford anuncia sua saída do país. “Eles querem subsídios!”, criticou Bolsonaro. Ferida em seus brios, a esquerda reage gritando que há 20 anos Olívio Dutra (PT), então governador do RS, teria previsto isso ao recusar as imposições draconianas para a montadora se instalar no Estado. Uma convergência crítica da extrema direita com a esquerda? Por que a “Trilogia Matrix” tornou-se um símbolo antissistema para a extrema direita, sob protesto da cocriadora Lily Wachowski? A direita alternativa põe em ação a mesma tática usada pela “Nouvelle Droite” (“Nova Direita”) francesa no final dos anos 1.960: apropriar-se de temas e linguagem da esquerda para aprisionar o oponente numa “matrix semiótica”. Sem saída, torna-se gradativamente reacionária: renuncia aos próprios temas que foram abduzidos pelo oponente político com medo de ser confundida com as “teorias da conspiração” alucinadas da direita: QAnon, Pizzagate, Ursal, etc. – na verdade, psy ops para que a esquerda caia na cilada da crítica “nem-nem” da grande mídia: o ardil da negação dos “extremos”.
Em maio do ano passado, o então ministro da Educação Abraham Wientraub publicou no seu perfil do Twitter a cena do filme Matrix (1.999) onde Neo precisa escolher entre as pílulas vermelha e azul. “Está chegando a hora de decidir!”, escreveu de forma cifrada o ministro do governo Bolsonaro.
Alguns dias depois, fez mais uma referência na rede social, publicando cenas da continuação Matrix Reloaded (2003) nas quais vemos o personagem Merovíngio, um nobre excêntrico descendente da realeza francesa – ele comparava o vilão com João Doria, oponente político na crise brasileira do coronavírus.
Por sua vez, minimizando o perigo do coronavírus, o empresário Elon Musk decidiu abrir suas fábricas nos EUA e publicou no Twitter: “escolha a pílula vermelha”.
Ao ler essas referências à Trilogia Matrix, Lilly Wachowski, a cocriadora da franquia, respondeu indignada: “vão se foder”.
Corta para esse ano de 2021, cujo início revela o enredo da crônica de uma crise anunciada: depois de 100 anos atuando no país, a direção mundial da Ford anunciou o fechamento de três fábricas que ainda funcionavam no Brasil. Concentrando a produção na América Latina apenas na Argentina e Uruguai.
“Faltou dizer a verdade: querem subsídios. Vocês querem que eu continue dando R$ 20 bilhões para eles como fizeram nos últimos anos?”, reagiu Bolsonaro no tradicional “cercadinho” do Palácio da Alvorada para a claque de apoiadores.
Bolsonaro replica a mesma crítica feita há 22 anos, em 1.999, pelo governador do RS, Olívio Dutra (PT), que não aceitou as condições draconianas impostas pela montadora para se instalar no Estado (subsídios de meio bilhão de reais, além de benefícios fiscais). Na época, Dutra denunciava a lógica perversa de multinacionais como a Ford: expansão dos negócios com menor custo e maior aporte de subsídios e recursos públicos.
Em postagem anterior sobre o “Grande Reset Global” (exortação do fundador do Fórum Econômico Mundial, Klaus Chwab – clique aqui), um leitor desse blog observava que a análise feita por esse humilde blogueiro em muitos aspectos coincidia com a do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O ministro denuncia esse projeto de reinicialização como uma conspiração globalista da Nova Ordem Mundial. Apenas os sinais estariam invertidos: enquanto para o Cinegnose é uma conspiração do clube dos bilionários contra os 99% restantes do planeta, para Araújo é a conspiração do “comunismo global”.
Ao falar de conspirações sobre uma nova ordem global, será que esse editor do Cinegnose estaria sendo seduzido pelo discurso alucinado de extrema direita? Ou o que vimos acima são exemplos de como a chamada “direita alternativa” (alt-right) há muito decidiu lutar no mesmo campo simbólico da esquerda? Em outras palavras: apropriou-se do discurso, da linguagem e até mesmo do ethos da revolta antissistema da esquerda.
Estratégia semiótica que até hoje a esquerda não conseguiu entender ou aplicar. E o que é pior, prefere dar de ombros, ridicularizando os “bolsomínions imbecis” ao verem postagens no Twitter como vemos abaixo: “A Ford sempre foi uma empresa tipo socialista, nada mais normal continuar em países que se autoproclamam socialistas...”.
E tem também aquele clássico do Lenin: “Fordismo: estágio superior do capitalismo”, acrescenta outro perfil.
Ethos antissistema
Que eu me lembre, até o início desse século, temas como sociedades secretas, nova ordem mundial, globalização e mundialização, multinacionais, neoliberalismo corporativo, capitalismo global, a manipulação midiática, só para ficar em alguns, eram pautas críticas do campo progressista, tanto acadêmico quanto da militância política.
Muito antes da extrema direita ostentar faixas dizendo “Globolixo”, a crítica ao monopólio da emissora sob o beneplácito da Ditadura Militar era um dos temas prioritários do campo político progressista.
O bilionário Elon Musk e o provocador de direita Weintraub transformando Matrix no símbolo antissistema da direita alternativa ou o ministro Ernesto Araújo exortando ao governo reagir contra a conspiração globalista são exemplos de uma estratégia semiótica – posam como ativistas corajosos oprimidos lutando contra uma mídia tendenciosa e a elite dominante (o “sistema”) exploradora e corrupta.
Essa estratégia de apropriação temática (logos) e discursiva (ethos) leva a situações paradoxais ou, até mesmo, ao caos semiótico. Como levantam as questões de Diogo Silva no artigo “Mudanças de Paradigma – como a extrema direita cooptou o esquerdismo”:
É preciso perguntar: se o racismo foi o fator decisivo, como pode ser que os mesmos estados do “Cinturão da Ferrugem”, que foram cruciais para a vitória inesperada de Trump, foram os mesmos que votaram em Obama duas vezes? Se o sexismo derrotou Hillary, por que as mesmas pessoas que celebraram Trump também estão torcendo por Marine Le Pen? E uma vez que examinamos mais de perto essas questões, outras vêm à mente: por que os apoiadores de Sanders apoiaram Trump após a derrota do primeiro nas primárias; por que Le Pen está coletando votos em áreas que tradicionalmente votavam nos comunistas; e qual é a razão de 25% dos eleitores do Partido Trabalhista terem apoiado o Brexit? – clique aqui.
Da mesma forma aqui no Brasil, como explicar que eleitores de Lula tenham votado em Bolsonaro como apontaram pesquisa Unifesp sobre a ascensão da extrema direita no Brasil (clique aqui); ou a maneira como a periferia de São Paulo votou em Doria acreditando nele como “um trabalhador que subiu na vida, assim como Lula” – clique aqui.
“2018 será o ano em que os esquerdistas se juntarão ao movimento nacionalista branco!”, bradou Mike Enoch, blogueiro supremacista branco em uma reunião alt-right de 2017 em Maryland (EUA) que estruturou a estratégia discursiva dos extremistas. “Precisamos ser explicitamente anticapitalistas. Não há outra maneira de avançar nosso movimento”, completou. Enquanto o conhecido líder supremacista branco, Richard Spencer, convocava um “movimento de trabalhadores de direita”.
A primeira razão óbvia desse foco da direita alternativa é a necessidade de recrutar novos militantes e crescer através de um appeal libertário. Embora a extrema direita possa formalmente (ou de forma “sígnica”) replicar a esquerda, seus objetivos e ações ainda divergem.
Dizem acreditar no “Black Power”, desde que você também acredite no “White Power”. São capazes de falar em “respeito à diversidade”. Desde que cada etnia fique restrita à sua nacionalidade ou gueto, sem miscigenação – em outras palavras, uma “limpeza étnica pacífica”. Spencer fala em “trabalhadores” e Bolsonaro em “cidadãos de bem”, mas na verdade cada qual está lutando por um Estado etno-nacionalista branco. Enquanto o conceito de luta de classes da esquerda é substituído pela sociedade de competição meritocrática.
Em outros termos, o primeiro objetivo da alt-right é “exaurir o mercado de libertários” ao ponto de nada sobrar para a esquerda.
Na verdade, esse manual de guerra semiótica é mais antigo do que se possa imaginar. Ele já foi consagrado pela extrema direita europeia, que já na década de 1.960 já havia adotado a linguagem de esquerda.
A base intelectual da direita alternativa está na França. A alt-right chegou a reivindicar como seu "pai espiritual”, o acadêmico francês Alain de Benoist, de 77 anos.
Confusão tática
Um capítulo do livro The Far Right in Western and Eastern Europe, de 1.995, observa que, no início da década de 1990, a Nouvelle Droite (Nova Direita) se tornou " um centro de confusão ". Insiste que essa confusão é inteiramente intencional e tática - a confusão permite que a alt right opere à vista de todos. O livro faz questão de enfatizar que, embora a Nouvelle Droite tenha cooptado parte da linguagem da esquerda e evitado a pecha fascista, sua filosofia está profundamente enraizada no neofascismo.
A Nouvelle Droite, e os movimentos que ela inspirou, carrega o legado de pensadores da extrema direita europeia do século XX, como Ernst Jünger, Julius Evola (sobre esse pensador e as relações da direita alternativa com a “magia do caos”, clique aqui) e Carl Schmitt, todos envolvidos em diferentes graus na ascensão dos fascismos entre as guerras.
O protesto estudantil generalizado de maio de 1.968 (o chamado “ano da revolta”) e, em seguida, uma greve total paralisou a França e se espalhou por Londres, Berlim e outras capitais europeias, impactando a direita. Embora posteriormente a ordem tenha sido restaurada, o presidente francês Charles de Gaulle nunca se recuperou do impacto generalizado dos protestos e foi afastado do cargo um ano depois.
Para neutralizar os efeitos culturais da revolta estudantil e operária de maio de 1.968, um grupo de cerca de 40 intelectuais se reuniu na cidade francesa de Nice para revigorar-se e transformar a sociedade francesa e europeia. A partir daí foi iniciada uma longa guerra cultural, tentando ganhar respeitabilidade para a direita. Como? Apropriando-se de temas da esquerda, apenas trocando os sinais.
Grande mídia e a crítica “Nem-nem”
Porém, essa tática de criar confusão no espectro não se limita a uma estratégia diversionista para confundir a opinião pública. Ela é a deixa para a grande mídia colocar em ação aquele discurso que o semiólogo Roland Barthes chamava de “crítica Nem-Nem” ou “ninismo” - um mecanismo de dupla exclusão: reduz a realidade histórica a uma polaridade simples, quantifica o qualitativo em uma dualidade e equilibra um com o outro, de modo a rejeitar os dois – sobre esse conceito clique aqui.
Um flagrante disso foi o comentário da analista de economia da GloboNews Miriam Leitão sobre a reação de Bolsonaro à saída da Ford do Brasil: “A crítica de Bolsonaro foi a mesma de Olívia Dutra quando era governador do RS... Tanto Bolsonaro como a esquerda fazem a mesma crítica às multinacionais...” Nesse tom prosseguiu a templária do neoliberalismo repetindo o indefectível mantra da necessidade pelas reformas tributárias, administrativas, como fosse um discurso do “bom senso” que evita os “extremos” políticos – logicamente, extremismos seja de esquerda ou direita, seja Bolsonaro ou Lula.